14 – Jean Echenoz

1. No início de 14, Anthime — sujeito comum, contador em uma fábrica — espera aproveitar a tarde de sábado na Vendeia. Pega a bicicleta e um livro e pedala até as colinas. De início, o único elemento que parece destoar do cenário tranquilo é o vento insistente. Minutos depois, sinos badalando e gente afluindo às ruas, o caos se instala no lugar. Vem a convocação urgente.

2. O título da novela de Jean Echenoz remete a 1914, ano em que teve início a Primeira Guerra Mundial. Àquela altura, porém, ninguém sabia o que esperar. Mantendo o foco no cidadão francês comum, 14 não analisa o conflito em retrospecto, mas no momento em que eclode.

3. 14 acompanha cinco amigos: Arcenel, Anthime, Bossis, Charles e Padioleau. Todos rumam para o front. São, como diz a sinopse, a “carne de canhão quase anônima que se viu entregue à própria sorte”. Também há Blanche, que permanece, aflita, na Vendeia. Durante o conflito, nasce a filha de Blanche com um dos cinco amigos.

4. O conflito pode não ser visto em retrospecto, mas o narrador é onisciente — sabe o que vai acontecer a cada um dos sujeitos. Isso, somado ao que o próprio leitor compreende do período — não, a guerra não vai durar apenas quinze dias, como pensa um deles —, contribui para a sensação de desconforto que 14 consegue despertar.

5. 14 é, em todos os aspectos, um relato econômico sobre a guerra. Os personagens são soldados de infantaria. A narrativa não se detém em militares de altas patentes. As descrições de batalhas ocupam no máximo três ou quatro parágrafos. A novela inteira tem pouco mais de cem páginas.

6. Cidadãos comuns, os homens recrutados às pressas “não tinham experiência” em combate. Foram mandados para o front sem receber um bom treinamento. “Tiveram que começar de chofre: foi só então que compreenderam que teriam de lutar.”

7. As descrições do front são cruas. Todas acompanham a percepção de um dos soldados — em especial Anthime —, ainda que guardem certa distância daquilo que se desenrola nas trincheiras.

8. Enquanto os homens lutam e morrem no front, a vida segue. Um dos cinco amigos recebe uma carta de Blanche — uma carta que revela que a menina Juliette cresce normalmente. Tudo o que a narrativa de Echenoz registra daquilo que a moça teria escrito: “primeiro dente”.

9. Num dado momento, o narrador comenta: “aquilo não tinha mais fim”. E logo em seguida: “aquilo não teve mais fim”. A mudança no tempo verbal, separada por algumas poucas linhas, é uma amostra daquilo que a prosa de Echenoz tem de sutil.

10. Com pinceladas breves — que às vezes não passam de um simples parágrafo —, 14 também se detém nas transformações sociais provocadas pela guerra. A ausência de homens jovens nas ruas. A corrida de mulheres e crianças em busca de um trabalho.

11. Outra das transformações: pequenas localidades como a Vendeia têm de se adaptar aos homens que voltam do front — homens mutilados ou incapacitados de alguma outra forma, que não recebem mais do que uma pensão do governo.

12. Justamente por não mostrar a condução de uma guerra de um ponto de vista mais amplo, sequer dando importância ao relato íntimo em primeira pessoa, a novela de Echenoz — nascido em Orange, sul da França, em 1947 — tem seus méritos.

13. 14 parece acompanhar uma tendência curiosa: a edição ou reedição, no Brasil, de importantes relatos de guerra.

14. Publicado originalmente em 2013, 14 faz parte da coleção Fábula da Editora 34 (“a fabulação é extensão natural da fala”). Foi lançado no Brasil em setembro de 2014, cerca de cem anos após o início da Primeira Guerra Mundial.

Estou com fome, gemia Padioleau, estou com frio, estou com sede e estou cansado. Pois é, disse Arcenel, você e todo mundo.

6 Comments 14 – Jean Echenoz

  1. Monalisa Marques

    Camila, antes de tudo preciso me apresentar. Sou Monalisa, também tenho um blog e venho há alguns dias procurando outros blogs dos quais eu realmente goste para trocar figurinhas. Blogs que falem de livros que eu realmente leria, sabe? E tenho certeza de que o seu será um desses. Seu texto é muito bom, você realmente me cativou, pretendo voltar aqui mais vezes.

    Aproveito para convidar você pra conhecer meu blog: http://www.literasutra.com
    Ficaria muito feliz em vê-la por lá.

    Um abraço,
    Monalisa

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  2. Bruna N

    A descoberta desse site e dessas resenhas foi maravilhosa! Descobri há alguns meses, na verdade, mas é a primeira vez que deixo um comentário. Li todas as resenhas já publicadas e já adicionei vários livros a serem lidos na minha lista.

    Tenho 21 anos, e sempre leio duas ou três vezes o mesmo texto para entender o melhor possível, mas sei que vários aspectos me passam despercebidos. Mas quem sabe mais pra frente eu melhore nisso, né? Só queria mesmo agradecer por escrever resenhas tão incríveis e me ajudar a descobrir vários livros que, se não fossem por você, eu não leria. Beijos! 🙂

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  3. Graça

    Oi, Camila!
    Bruna, você está coberta de razões.
    Este site é esplêndido, quem visita, volta sempre, é um vício delicioso para quem aprecia a leitura.
    Camila é crítica literária das melhores, agrega conhecimento, maturidade, experiência, uma sinceridade única.
    Alguns comentários feitos por Camila conseguem superar o livro em questão.
    Beijos

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  4. Bruno Viana

    —————SPOILER ALERT—————-
    Comprei o livro sem expectativas – em uma visita à livraria cultura nas minhas férias em SP – e logo que cheguei em casa procurei me informar sobre o livro e acabei descobrindo o blog/site (muito bom, a propósito).
    Me apaixonei pela leitura, devorei o livro, terminei em pouco mais de 1:00 h corrida, rsrs.
    mas no final, fiquei confuso – deve ser pela falta da prática à leitura -, Anthime se relaciona no fim da trama com Blanche, no entanto, logo no meio da novela, durante um passeio de Anthime e Blanche, onde Blanche carrega seu bebê, um cachorro esbarra no carrinho e o autor retrata o bebê como sobrinha(o) de Anthime. Seria Blanche irmã do Anthime ou então, Anthime irmão de um dos amigos de “front”.
    Refarei a leitura do conto!
    mas mesmo assim, conto com a ajuda!
    Obrigado pela resenha, ficou ótima!
    desde já no aguardo!

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  5. bruno knott

    livro magnífico.

    conciso, forte e poético.

    alguns capítulos me marcaram bastante, como aquele dedicado aos animais na guerra. verdadeiro e cruel.

    fiquei curioso em descobrir mais livros do autor e também em ler outros posts em seu site.

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