A maçã envenenada – Michel Laub

A maçã envenenada é o segundo volume de uma trilogia iniciada com Diário da queda (2011). Não se trata de uma continuação, mas de dois livros totalmente independentes entre si. O que liga um e outro é a tentativa questionar o impacto de grandes eventos na vida de personagens comuns. O tom do romance inaugural foi dado por um sobrevivente de Auschwitz, avô do protagonista.

Em A maçã envenenada há, lado a lado, o suicídio de Kurt Cobain e a guerra civil que matou milhares em Ruanda. Entre o individual e o coletivo transitam toda a sorte de reflexões — que não deixam de estar interligadas — sobre a responsabilidade pessoal, a gratuidade, as reações diante do inevitável, os pequenos passos acidentais ou conscientes que alteram todos os passos seguintes e as pistas que (por inépcia, desatenção ou escolha) se deixa de interpretar. Como seu predecessor, A maçã envenenada é um soco no estômago.

É na primeira metade da década de noventa que o protagonista do romance, então com dezoito anos, atravessa o que ele mesmo define como “uma zona de sombras”. Não há, até então, nada que o diferencie dos jovens da mesma idade. As coisas começam a mudar quando conhece Valéria, sua primeira namorada — um tanto, mas compreensivelmente, desequilibrada —, e quando é forçado a trancar a faculdade e a diminuir o tempo que dedica a sua banda para servir ao exército. Quando um show do Nirvana em São Paulo é anunciado, o narrador quer muito estar lá — mas, para isso, precisa decidir se abandona ou não o quartel em um momento de crise.

Kurt Cobain e o Nirvana estão ligados a um episódio trágico e inesquecível ocorrido durante essa “zona de sombras” do protagonista de A maçã envenenada — precisamente a época do show no Morumbi, em 1993. Kurt Cobain se suicida em 1994, o que confere ecos estranhos a esse mesmo episódio.

Michel Laub não é o primeiro escritor gaúcho a introduzir a morte de Kurt Cobain numa narrativa de ficção. Em “9 de abril de 94”, publicado na antologia Rock Book – Contos da era da guitarra (editora Prumo), Carol Bensimon explora a comoção que a notícia do suicídio do líder do Nirvana provoca em adolescentes de uma cidade do interior. “Kurt Cobain havia se matado. Marina contou sobre o que vira na tevê, porque a sua televisão sintonizava a MTV, era uma imagem ruim e tremida, mas ninguém se importava com imagens ruins naquela época (…). Contou sobre o eletricista, sobre a espingarda no chão da estufa, contou sobre a carta que Kurt havia deixado para a mulher, a filha e os fãs do Nirvana, a pobre mulher, a pobre filha, os pobres fãs do Nirvana, todos pareciam órfãos agora, órfãos realmente putos da vida, segurando velas, atônitos sob o céu cinzento de Seattle”, escreve ela. A abordagem de Laub e Bensimon é semelhante. Ambos tratam da ressonância da perda trágica de um ídolo na vida de jovens comuns, influenciados, assim como milhares de outros, por aquilo que o Nirvana representa. Bensimon mantém o foco numa cidade pequena, o que acentua o contraste e a percepção da extensão da influência de Kurt Cobain.

Michel Laub constrói A maçã envenenada — pouco mais de cem páginas, blocos de texto numerados e de tamanhos variados como em Diário da queda — sem a preocupação de seguir uma linha do tempo. No momento em que se volta para a época em que “morava com os pais e tinha uma guitarra e fazia parte de uma banda”, o protagonista se aproxima dos quarenta anos. Natural que se deixe levar pelo fluxo da memória, nem sempre objetivo — de modo que a ordem cronológica dos acontecimentos se revela na medida em que o livro avança. Frequentemente uma informação incompleta é retomada e esclarecida mais adiante. Há uma tensão na qual boa parte do livro se ampara, e que cresce na medida em que duas revelações se aproximam: o narrador deixou o quartel para assistir ao show do Nirvana? que episódio pode ter sido tão trágico?

A maçã envenenada foi, em certa medida, construído a partir de “Drain you”, música do álbum Nevermind. O próprio título é uma alusão a um verso (You’ve taught me everything/ Without a poison apple), e os nomes das três partes em que o livro está dividido devem muito a outros trechos. A letra é significativa quando se fala na relação do protagonista com Valéria — uma relação que é, em todo caso, mais intensa do que um garoto de dezoito anos conseguiria suportar. E é essa intensidade que Kurt Cobain canta em “Drain you”.

O protagonista de A maçã envenenada faz mais do que relatar sua experiência pessoal. Paralelamente ao seu drama, narra a história de Immaculée Ilibagiza, ruandense da etnia tútsi que viu a família ser dizimada durante a guerra civil no país. Immaculée dividiu sua experiência trágica no livro Sobrevivi para Contar  O poder da fé me salvou de um massacre (editora Fontanar), um relato dos noventa dias em que permaneceu escondida em um banheiro com outras sete mulheres. O narrador de A maçã envenenada, que se tornou jornalista, entrevista Immaculée em São Paulo. O que ouve é forte demais para ser esquecido ou assimilado.

Kurt Cobain se suicidou um dia antes do início da guerra civil em Ruanda, daí a junção parcial dos dois eventos em A maçã envenenada. Incorporada ao romance, a história real da escritora ruandense pode alterar levemente a forma como o leitor percebe a trama principal, o que, é claro, é a intenção do autor. Em um primeiro momento, a vivência de Immaculée se limita a amplificar o incômodo causado pela experiência do protagonista (que, é preciso dizer, seria inquietante ainda que estivesse isolada de qualquer outro relato). Poderia ficar nisso, mas Michel Laub vai além — o que significa que seu narrador instiga abertamente uma comparação entre Imaculée e Kurt Cobain. Seguindo a provocação, o leitor é forçado a encarar e opor duas posturas muito distintas — o apego à vida e a escolha de terminar com ela.

Nada disso é leviano ou piegas, ou A maçã envenenada não teria a força que tem. Há muitas questões postas sem intenção ou direito de resposta: elas estão lá para aumentar o impacto de um livro excepcional. Um dos motivos pelos quais não se chega a um esclarecimento completo são as fronteiras óbvias que separam o eu e o você. A impossibilidade de conhecer o outro por inteiro, no entanto, não desencoraja as especulações.

Immaculée publicou um livro que flerta com a autoajuda. Quando analisadas, as lições são sentimentais e um tanto simplistas. Kurt Cobain escreveu letras ambíguas cujas centenas de interpretações possíveis irão desaguar em certa melancolia. A diferença entre os dois testemunhos leva o narrador a se perguntar: “O que a aparência, a sintaxe e o estilo de um texto diz sobre quem o escreveu?”. Muita coisa.

É mais fácil dizer de A maçã envenenada: nem sempre é possível avaliar uma situação enquanto não se toma alguma distância, seja no espaço ou no tempo.

Há uma ambiguidade na forma como se lida hoje com o tema da doença. Ao mesmo tempo em que se fala das vantagens de ter uma vida saudável, o que inclui alimentação, exercício físico, restrição de tabaco, um padrão estético e de comportamento martelado pela publicidade, TV e campanhas governamentais, existe um glamour em torno das neuroses. Difícil achar um filme hollywoodiano cujo herói tenha comportamento convencional. Nada é mais popular em redes sociais do que parecer inconformado, excessivo, imprevisível, uma forma mais modesta do clichê que vê na genialidade um prolongamento da loucura. Quando Kurt Cobain morreu, não houve obituário que não associasse o suicídio a uma espécie de alma artística e sensível, indefesa diante de um mundo não artístico e não sensível, que o fez se dilacerar até encontrar lá dentro um vocabulário que pudesse dizer o que realmente queria. Ninguém publicaria um trecho assim, e foi um entre dezenas, escritos por solitários que jantam comida congelada num quarto e sala e gostam de mostrar ao público o quanto conhecem da dura vida das celebridades, se a morte fosse por infarto ou apendicite, AVC ou toxoplasmose. Nenhum ídolo da música chega ao pico de popularidade e interesse como o que conscientemente procura o fim. Nenhuma relação amorosa parece ser verdadeira se não tiver uma dose de intensidade, caos e destruição mútua, e até hoje me pergunto o que teria escolhido se existisse esta opção — doença física ou mental, ambas com a mesma gravidade e surgidas na mesma época, as consequências visíveis e invisíveis pelo resto dos anos, tanto no caso de Valéria quanto no meu.

7 Comments A maçã envenenada – Michel Laub

  1. Adriana

    WOW!
    Que máximo, Camila!
    Bom… Eu já fiquei extasiada com o Diário da queda…
    Estou só imaginando esse!
    Obrigada por mais uma excelente resenha!
    Beijos,
    Adriana

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  2. Fernando

    Nossa que coincidência, peguei este livro na mão este final de semana na livraria mas acabei optando pelo Terra de casas vazias do Leone.
    Na proxima ida a livraria a maçã não me escapa.
    Parabéns pela resenha.

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  3. Simone Mello

    Nunca li nada do Laub, mas vou corrigir essa falha urgentemente. Obrigada por mais uma resenha magnífica. Abraço!

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  4. v.

    paquero a obra do laub desde o Diário da queda, mas nunca o li. curti o lance de drain you, sendo uma das minhas favoritas do nirvana (Chew your meat for you/Pass it back and forth/In a passionate kiss/From my mouth to yours – tão nojento, tão apaixonado ahahaha).
    fiquei interessado, acho que investirei no laub no futuro…

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  5. Graça

    Olá, Camila!
    Cortei a fila e acabei de ler A Maçã Envenenada.
    Impactante, gostei muito.
    Sempre aprendo muito com livros que focam o psicológico.
    Obrigada e parabéns pela linda resenha.
    Beijos, Graça

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