O alcance da literatura: uma entrevista com Ricardo Lísias

 

A crítica desempenha um papel importante em A vista particular. De um lado, ela confere alguma legitimidade à carreira incipiente do artista José de Arariboia. De outro, é a instituição cujo silêncio em relação à exposição Comunidade brava: turismo Brasil mais causa incômodo. Ela não busca discutir a tensão entre ética e estética. Ela não denuncia o trabalho de Arariboia. O único ponto de conflito, os direitos trabalhistas dos moradores da comunidade Pavão-Pavãozinho que participariam da exposição, partiram de uma pergunta levantada por um canal de televisão. (a) Ainda que as situações descritas no livro sejam inverossímeis, uma de suas intenções foi explorar o silêncio da crítica em relação a contextos e circunstâncias mais complexos?

De fato a crítica de primeira hora parece aceitar o trabalho de José de Arariboia com certa rapidez, mas tudo no romance acontece com grande velocidade – inclusive o fim do próprio livro. O lugar da crítica ocupa o mesmo dos outros discursos na narrativa, fiquei achando.
Para mim é difícil falar de intenções, já que com o livro publicado, eu me torno mais um dos leitores e não gosto muito de ocupar nenhum tipo de espaço especial na construção dos sentidos do livro, ainda que por uma questão de assinatura, o meu nome acabe acarretando isso. Mas é um conflito para mim.
De uma forma ou de outra, me parece que segundo a posição do leitor, esse ou aquele ponto parecerá mais forte do que outro.

(b) Esse silêncio, caso você o identifique — seja em um ou outro crítico ou tendência, seja de modo geral —, revela covardia, despreparo ou ambos?

Eu não faria nenhum tipo de generalização, até porque no âmbito das artes plásticas existem muitos veículos diferentes, alguns aliás muito bons. O que me parece é que o trabalho de Arariboia é muito magnético, e a crítica de primeira hora o aceita sem reservas, mas como mais ou menos tudo na trama.

(c) Onde há espaço, hoje, para uma crítica mais contundente? É de responsabilidade dos jornais e revistas reabilitar esse espaço?

Não sei se há a necessidade de aproximar algum tipo de contundência da atividade crítica. Acabei de ler um ensaio sobre uma capa de revista que me pareceu brilhante: é calmo, argumentativo e não emite exatamente juízos. Apenas analisa. Talvez seja esse um bom mote para a crítica contemporânea. Vi alguns textos tentando mapear trabalhos que estejam buscando interferir no que seria a vida radicalmente contemporânea. Eram textos de amplo arco, muito referenciais e analíticos. Achei bastante interessante e inspirador.
Já aquela crítica que diz: “isso é bom”, “isso é ruim”, “isso é muito ruim”, “Isso é muito bom” me parece anacrônica, já que hoje em dia todo mundo dá opinião sobre qualquer coisa. Dessa forma, o que parece mais importante não é a opinião, mas sim a maneira com que ela se fundamenta, ou seja: a força do argumento. Argumentos me parecem bem mais interessantes do que juízos. Mas mais interessante ainda é quando o leitor pega o texto e não apenas constrói significados muito bem argumentados, mas vai além e assume que está tomando o texto para si mesmo e produzindo algo com ele. Aqui estamos falando de gente como Derrida, Spivak, Edward Said, leitores desse porte. Boris Groys também tem feito ressignificações que me parecem atualmente muito interessantes.

(d) É possível especificar alguma diferença nas posturas da crítica literária e da crítica de arte, ou as duas têm se comportado, na mídia e na academia, de formas similares?

São atividades muito amplas para uma generalização. Acho que tem de tudo em muitos espaços diferentes. Eu não acompanho tanto assim para fazer algum balanço.

(e) A crítica tem alguma responsabilidade que excede o mero juízo estético? É possível rotular uma crítica de antiética por aquilo que ela omitiu?

Acho que dar um juízo estético, como eu disse na resposta (c), não me parece a atividade mais importante para a crítica. Acho bem mais produtivo a formação de significados profundos, bem argumentados e com poder de intervenção. Sequer acho que o vocabulário jurídico caiba muito bem na arte contemporânea, ao menos no que diz respeito a 2016, é um vocabulário muito degradado. O poder judiciário está acabando até com as palavras…
Não vejo como uma crítica possa não omitir alguma coisa, na medida em que a própria linguagem vai exigir omissões, falhas, fracassos, lapsos, decisões e parcialidade. O que fica omitido me parece que vai dizer respeito aos interesses desse determinado leitor crítico. Não sei se a palavra ética cabe aqui, talvez ideologia, mas não estou bem certo.

(f) A crítica, quando feita com responsabilidade, tem o potencial de modificar alguma circunstância?

Acho que na mesma medida que os outros discursos. A crítica não ocupa um lugar especial, maior ou menor que outras manifestações. Um texto que de início seria sobre uma obra X ou Y pode ser muito mais interessante que essa própria obra, ou muito menos.

(g) A crítica já foi mais responsável, ou seja, há alguma perda significativa em relação ao que os críticos escreviam no passado?

Não vejo muita razão para dizermos que uma crítica é mais responsável que outras, e nem que hoje é mais irresponsável que ontem. A crítica está, como os outros discursos, sendo feita. Alguns textos podem ser muito relevantes, outros nem um pouco. Mas isso ocorre tanto hoje quanto em qualquer outra época.

 

O narrador, como já foi dito, sublinha o quanto a pequena produção crítica foi importante para a consolidação do trabalho de Arariboia. (a) Como você, Ricardo Lísias, enxerga a maneira como a crítica trabalhou com seus livros até hoje?

Não me considero em um lugar razoável para avaliar a crítica sobre o meu trabalho, mas acho importante responder que o meu lugar não é razoável.

(b) A crítica tem algum peso na consolidação de algum autor brasileiro, ou, ao contrário, já perdeu a relevância?

Começando pelo final, não acho que a crítica tenha perdido qualquer relevância ou que irá perder. Textos de não-ficção sempre terão espaço e muitos estão entre os principais produzidos nas últimas décadas. Não vejo nenhuma superioridade de Kafka sobre Walter Benjamin, por exemplo. Do mesmo jeito, nada faz Perec ser mais relevante do que Derrida – embora, claro, nem menos relevante…
Não acho, entrando na primeira parte da questão, que existam autores consolidados. Alguns obtêm aqui e ali aceitação por determinados grupos, segundo uma série de critérios que são e sempre serão (e devem ser) questionáveis. Além dos critérios, há também os interesses, sequer sei se podem ser diferenciados. A quem interessa e por que interessa dizer que esse autor é mais relevante do que outro? Dizer que um autor é mais consolidado do que outro me parece ser simplesmente dizer que as obras que levam sua assinatura conseguiram por algum motivo ensejar mais acordos do que outras obras com outras assinaturas.
Espero nunca ser consolidado.

 

Schiller, para citar um autor que tentou revolucionar esse campo de estudos, enxergava as esferas moral, teórica e estética como esferas distintas. (a) Você as vê, de fato, como esferas separadas? (b) Como as três se conectam, se interseccionam e/ou se sobrepõem?

Como vou argumentar mais abaixo, não vejo nenhum valor na palavra “moral” e nem no campo semântico que ao menos atualmente ela enseja. Não acho hoje em dia muito produtivo fazer algum tipo de fracionamento do discurso crítico, já que ele, de Schiller para cá, parece ter tomado a direção contrário e amalgamou-se a muitas possibilidades diferentes: teoria crítica, crítica estética, crítica ensaística, crítica negativa, anticrítica, até a ficção pode incorporar o discurso crítico, ou o contrário.

 

A galerista de Arariboia tem uma reação moralista ao que os críticos passaram a chamar de “happening” do artista, ou seja, à espécie de dança que acabou por contagiar uma multidão. Não à toa, ela abriu mão de representar um artista que veio a se tornar extremamente lucrativo, o que parece um bom revés para alguém que manifesta uma postura semelhante. (a) Vamos considerar o evento de Arariboia como uma performance, mais ou menos involuntária, é claro, mas ainda assim uma performance. Na recepção da arte, seja pelo público ou pela crítica,deve haver espaço para o moralismo? (b) É possível separar o moralismo da busca genuína pelo que é ético? Como traçar essa linha?

Não acho que deva haver espaço para o moralismo em nenhum lugar social. O moralismo se liga geralmente a todo um conjunto de preconceitos que causam bastante sofrimento aos grupos não hegemônicos. Os diretos dos homossexuais, por exemplo, são subtraídos sempre por meio de argumentos baseados em algum tipo de código de comportamento, ou seja, de moral.
Do mesmo jeito, a própria palavra “moral” parece ser usada como subterfúgio para movimentos despolitizadores. Vou dar um exemplo bastante concreto. Quando publiquei o romance Divórcio, grupos interessados em despolitizar o livro lançaram mão justamente do campo semântico da palavra “moral”: o discurso que pretendia fazer com que o livro não fosse lido dizia, mais ou menos literalmente, o seguinte: “é um livro escrito por um marido traído para vingar-se do adultério da esposa, um livro moralista, portanto”. As aspas aqui se justificam. Tratar o livro como moralista era a forma de tentar impedir sua circulação.
Enfim, esse grupo ocultava o fato de se tratar de um livro que narra um adultério ocorrido no interior do Festival de Cannes, por uma jornalista que foi cobrir o evento com um dos jurados do prêmio principal para saber antes dos outros jornais quem venceria o prêmio. Trata-se de uma crítica ao jornalismo e não uma narrativa moralista. Todas as pessoas que acusaram o livro de moralista ocultavam esse detalhe. Elas tinham portanto um interesse bastante forte em fazer isso.
Como está com a carga semântica muito contaminada, eu acho que a palavra moral deve ser abandonada.
Com relação à segunda pergunta, também tenho um pouco de dúvidas sobre a palavra “ética”. Acho-a do mesmo jeito bastante contaminada. Talvez seja mais interessante e eficaz entrarmos no campo semântico da palavra “política”, assim os mecanismos de censura ao menos começam a ficar claros.
Portanto, nem moral e nem ética: política, simplesmente. E para falar de política, fugindo assim da censura, precisamos tratar do lugar de fala, de quem resolve representar quem, das possibilidades e dos alcances da literatura, enfim, de um debate que o establishment detesta.
Apenas um adendo: quando li A vista particular, fiquei com a impressão de que a galerista simplesmente faz uma bobagem do ponto de vista estratégico: ela acha que José de Arariboia com a performance tinha acabado de destruir a própria carreira. Como tinha que tomar uma decisão muito rápida, por causa da exposição no Museu do Amanhã, decide não mais representá-lo. E quando vê, ele simplesmente se torna criticamente muito mais reconhecido e lucrativo.

 

Existe um limite para arte? Como isso se relaciona à ideia de incômodo, que é, de certa forma, uma condição importante para qualquer manifestação artística?

Mais uma vez, se a gente for impor algum limite para a arte, vai entrar no campo da censura. Acho que as coisas não podem ser tratadas dessa forma, simplesmente. As sociedades recebem a arte conforme suas próprias bases. Eu gosto muito da obra do Sergio Buarque de Holanda. Enfim, não me resta dúvida de que o Brasil não convive muito bem com o conflito, qualquer conflito que seja. Não estaria aí também uma explicação para a dificuldade de constituição de uma arte realmente radical, ou seja de uma arte-arte, ou quem sabe de uma arte-muito-artística? Essa dificuldade já foi notada por muita gente na literatura, nas artes plásticas (com em A forma difícil do Rodrigo Naves, por exemplo), no cinema, no teatro etc.
Acho que essa questão do incômodo precisa mesmo ser mais analisada. Quem hoje está incomodado com os nossos livros?

 

Katie Roiphe, ao entrevistar a jornalista e ensaísta Janet Malcolm, perguntou, de forma bastante agressiva, se Malcolm já havia sentido algum “estirão entre a ambição e a criança”, ou se “a impiedade da escritora esteve alguma vez em conflito com os instintos maternais”. É muito comum colocar questões semelhantes — e nem sempre de forma polida — a autoras mulheres, mas os homens raramente a enfrentam. Me parece que você é um autor que pode encarar o tema com honestidade. (a) Como a paternidade mudou sua percepção do próprio trabalho? Como influenciou aquilo que produziu depois? (b) Existe diferença entre perguntar a uma escritora mulher e a um escritor homem sobre filhos?

É uma questão inquietante e a premissa me parece bastante verdadeira. Durante os jogos olímpicos do Rio de Janeiro, eu estava assistindo às competições de natação e um comentarista ao apresentar uma prova feminina, observou que uma das nadadoras deveria ter dificuldades pois tinha tido filhos há um ano, mais ou menos. Segundo ele, a maternidade deveria prejudicá-la. Enfim, a mãe recente venceu a prova com larga vantagem. Eu resolvi acompanhá-la durante os jogos, e ela ganhou praticamente tudo. Se não me engano, o primeiro nome dela é Katinka, e acho que é húngara. Ganhou tanta medalha que perdi a conta. Outra grande estrela da natação, Michel Phelps, se não me engano havia sido pai 3 ou 4 meses antes dos jogos, e os comentários eram muito diferentes daqueles que diziam respeito à Katinka. Ou seja, é realmente isso: a maternidade é tratada de forma diferente da paternidade. E não dá para dizer que isso se deve a razões físicas, afinal de contas a gravidez não é uma doença ou uma deficiência, apenas uma situação que exige acompanhamento médico.
Tenho uma amiga que trabalha com acompanhamento de mulheres que tiveram parto recente em Londres. Muitas vão para casa depois de 12 horas do parto. Mesmo partos por operação cesárea não trazem prejuízo físico para as mulheres além de alguns dias de repouso. Então, é machismo mesmo.
Depois de ser pai, vi o machismo de maneira concreta. Sempre que estou com a mãe do meu filho, assuntos que dizem respeito a ele são tratados pelas pessoas com ela, nem olham para mim. Várias vezes em que estou passeando na rua com meu filho, as pessoas perguntam onde está a mãe. Várias placas dizem assim: “Atendimento preferencial: mulheres acompanhadas por crianças de colo…” É um negócio absurdo.
Mas vou responder objetivamente às perguntas agora:
Escrevo (ou talvez eu deva dizer “produzo trabalhos literários”) todos os dias há muitos anos. No geral, preciso de silêncio absoluto. Às vezes, durante algumas viagens, já escrevi em avião ou no aeroporto, mas o resultado final foi no máximo um esboço. Para continuar no espírito da pergunta, escrevi também na maternidade, durante os três dias em que eu e minha mulher, e o meu filho, estivemos na maternidade, também escrevi. Evidentemente uma criança em casa altera bastante a questão do silêncio absoluto. Assim, para escrever da maneira que considero a ideal, desde que meu filho nasceu acordo uma hora mais cedo. Então, o que mudou é que durmo menos. Mas como dizem que com a idade é assim mesmo, as horas de sono diminuem, acho que nesse sentido tudo continua igual.
Muitas, nitidamente, mas acho que no mesmo sentido do que escrevi no começo: como nossa sociedade é muito machista, e o atual establishment literário não resiste à sociedade, mas a espelha, não estranha que isso aconteça. É exatamente como na natação…
Lembrei-me agora de outra situação muito sintomática disso tudo e que aconteceu agora no início de 2016. Eu e outras três pessoas fizemos um protesto contra a maneira com que uma editora estava conduzindo a publicação do livro Minha luta, de Adolf Hitler. O editor, em vez de responder aos nosso argumentos, resolveu nos agredir. Curiosamente, apesar de desde o início estar claro que quem organizava o abaixo-assinado eram quatro pessoas, ele só agredia a mim. Xingava, me chamava de louco, dizia que eu tenho problemas com dinheiro, um monte de asneiras ofensivas, mas só dirigidas a mim. O abaixo-assinado estava sendo feito via redes sociais. Os quatro tínhamos mais ou menos o mesmo número de contatos e agíamos de forma igual. Mas as agressões realmente sempre eram dirigidas nominalmente a mim. Eu demorei um tempo para entender as razões disso. É que as outras três pessoas eram mulheres… Sequer eram portanto, por uma pessoa assim, consideradas autoras.
Por fim, vale registrar que essa é a primeira vez que me perguntam sobre paternidade em um ambiente literário público. Para as mulheres, perguntam sempre, ou seja: é diferente mesmo, embora não devesse ser…

 

Ao longo de A vista particular, o leitor não tem acesso às intenções de José de Arariboia ao produzir uma obra. (a) A intenção de um autor, qualquer que seja seu meio de expressão, deve ser levada em conta? Uma boa intenção pode eximir um trabalho ruim e/ou antiético? (b) Quando publica um novo livro, você sente a tentação de explicar suas intenções? (c) Quais foram as suas intenções ao escrever A vista particular?

Antes de responder, eu gostaria apenas de sublinhar que não vejo nenhuma possibilidade de um trabalho artístico ser, no seu interior, antiético.
Na verdade, não consegui compreender muito bem a questão: a intenção de um autor deve ser levada em conta para quê? A impressão que eu tive é que nos momentos em que José de Arariboia demonstra algumas de suas intenções, isso parece servir para mostrar como elas acabam não dando exatamente certo e que o sucesso dele parece sempre errático e muito casual. Ele me parece o tipo de pessoa que não entende muito bem o que está acontecendo, embora tenha alguns lampejos de consciência estética.
Acho difícil responder à pergunta nos termos que ela foi colocada: uma boa intenção eximiria um trabalho de quê? As obras de arte simplesmente existem. Para usar uma terminologia heideggeriana muito simplificada, ou de um jeito trash, elas estão aí. Algumas são consideradas muito ruins por quase todo mundo hoje, mas daqui a cem anos podem ser consideradas brilhantes. Muitas obras consideradas ótimas hoje desaparecerão do mapa em alguns anos. Algumas obras são consideradas excelentes por alguns grupos e péssimas por outros. Alguns grupos, por sua vez, têm bastante interesse em dizer que a obra X é brilhante. Outros grupos não têm interesse algum. Os grupos que ocupam lugares de prestígio hoje, amanhã serão surpreendidos pelo equívoco de suas escolhas, ou ao contrário continuarão ainda mais orgulhosos e cheios de certezas.
A minha única intenção ao publicar um livro é dar continuidade à minha produção artística, segundo os parâmetros que eu acho importantes (ou os que fui capaz de mobilizar) para aquele momento e aquela determinada questão. Como não estou respondendo às questões na ordem, não lembro se eu já disse ou se ainda vou dizer (ou melhor: não sei se o leitor já leu ou ainda vai ler o que afirmo a seguir), mas sou apenas mais um leitor de qualquer texto, inclusive daquele que assino. O fato de assiná-lo por si só não determina que eu seja um leitor privilegiado dele. Os sentidos de um texto quem dá é o leitor, portanto cabe ao leitor também tentar achar as intenções de um texto, mas isso vai sempre dizer respeito ao leitor.

 

Em algumas frases, o traficante Biribó dá a entender que sua vida mudou, ou poderia mudar,através da arte. A arte — incluindo a literatura — transforma, ou essa é uma visão romântica?

Eu acho que naquele momento a arte sem dúvida transformou a vida do traficante, e no caso para melhor. No entanto, dá para perceber que essa mudança não foi duradoura o suficiente para conseguir afastá-lo do fim que todo grande traficante acaba tendo. Como nada na arte é eterno – simplesmente porque a arte é deste mundo e nada neste mundo é eterno – a transformação acaba enfim regredindo.
Às vezes eu fico pensando se para o caso do Biribó não foi tudo apenas um sonho. Ou será que ele não foi simplesmente usado, como muitas vezes a arte faz com as pessoas? Afinal de contas, todo ato de cultura não é também um de barbárie? Temo que seja.

 

Segundo o narrador, “alguns estudiosos [afirmavam] haver certo panfletarismo no trabalho” de José de Arariboia. O que você acha que a arte em geral e a literatura em particular é capaz de alterar? Você vê algum panfletarismo na própria literatura?

A literatura ocupa um lugar na sociedade, ou quem sabe na vida humana. Por isso ela pode fazer muita coisa, inclusive nada ou, pior ainda, criar discursos com a intenção de fazer a sociedade regredir ou conservar-se onde está. Claro que há possibilidades de intensificar esses resultados, ou afrouxá-los, conforme a intenção dos grupos em conflito ou em acordo.
Atualmente há o discurso de que a literatura teria perdido a importância, o que certamente importa para determinadas intenções. Não concordo com isso: acho que a literatura pode intervir de muitas formas na sociedade. Ela pode por exemplo expor determinadas ideologias, o que talvez acarrete movimentos de defesa dessas próprias ideologias, o que as irá expor ainda mais. Talvez a palavra denúncia caiba aqui, mas ela será eficaz apenas na medida em que esteja adequada às exigências contemporâneas.
Quanto à segunda parte da pergunta, acho que a palavra “panfleto” ou suas derivadas, como o “panfletarismo” ou “arte panfletária”, já estão muito gastas e contaminadas, com um campo semântico pouco efetivo para o mundo contemporâneo. É possível que ela tenha sofrido intervenções de sentido conservador. O que faz com que a arte deva excluir uma questão, a política, e não outra qualquer? Do mesmo jeito, o que conhecemos como “beleza”, “contar uma história”, “narrativa” e por aí vai são conceitos históricos, o que significa que poderão tomar mais ou menos importância conforme as intenções de quem constrói os sentidos.
Na temporada que passei na Áustria, dando aula na Universidade de Viena, assisti a uma peça de Elfriede Jelinek que lidava com a questão dos refugiados. No início da peça, a platéia era avisada de que o espetáculo pretendia recolher doações para a Fundação Caritas. As pessoas compravam o ingresso normalmente para um espetáculo na maior teatro do país e no início eram avisadas de que na saída a Fundação Caritas recolheria dinheiro para os problemas dos refugiados. Doava quem quisesse.
Enfim, ficava claro que todo o espetáculo estava montado para que no final as pessoas deixassem voluntariamente a maior quantidade de dinheiro possível para essa fundação. Pois bem: na saída as pessoas doavam tanto dinheiro que dá para dizer que a peça foi esteticamente extremamente bem-sucedida.
Dependendo do discurso e das intenções de quem o enuncia, essa peça extremamente bem sucedida seria qualificada como um panfleto.
Há aqui um trailer para uma das montagens do impressionante texto de Jelinek:

Em tempo: eu doei tudo que tinha no bolso, inclusive o dinheiro para o jantar.

 

Por que a opção pelo narrador distanciado e pelos personagens com poucos contornos? Como você chegou a este formato?

Eu tenho a impressão que o livro sequer tem personagens. Talvez um ou outro chegue palidamente próximo disso, mas acho que há simplesmente nomes, ou quem sabe assinaturas. Há uma assinatura como José de Arariboia e outra como Merval Pereira. Há Marina dalla Donatella e V. Safatle. Como o leitor, inclusive eu, que agora sou apenas leitor do livro, reage diante dessas assinaturas? Não sei dizer exatamente como cheguei a isso, mas acho que tem alguma ligação com tantas dificuldades de realização estética que sinto, com a recusa a representar qualquer coisa e com algo ligado à filosofia contemporânea. Deve haver algo de Derrida aí, mas é muito difuso.

 

Somos um país de poucos leitores. Como mudar isso? E por qual razão?

Talvez seja uma questão política. Uma parte bastante significativa da população não tem acesso à educação de qualidade, ou mesmo a qualquer educação. Há atualmente vários movimentos de estudantes tentando trazer mais dignidade para o ambiente escolar. Obviamente, esbarram em forças conservadores, que querem que a escola brasileira continue muito deficiente. Como já foi muito repetido, a crise na educação brasileira não é uma crise, mas um projeto consciente de exploração. Dessa forma, a melhoria na educação parece ser uma questão de comprometimento político. E se quisermos um país um pouco mais igualitário, temos que obviamente apoiar a luta desses estudantes. Mas é como sempre algo estranho: a classe política eleita, e no caso de muitas regiões brasileiras (como no meu estado, São Paulo, e no seu, Rio Grande do Sul), vai exatamente no caminho contrário de qualquer melhoria. Há algumas semanas estive no Rio Grande do Sul e fiquei pasmo com o baixo nível do governador Sartori. Enfim, quando a classe política é representada por esse tipo de bufão, ou por uma caricatura de revista da Avon, como em São Paulo. Só nos resta hoje a ação individual, ou através dos diversos grupos de resistência ao establishment.

 

Leia a resenha do livro.

11 Comments O alcance da literatura: uma entrevista com Ricardo Lísias

  1. Vinícius Gomes

    Excelente livro, excelente resenha, esclarecedora entrevista.

    Uma pergunta fora de contexto, se me permite: um dia teremos acesso novamente ao “guia de literatura para mal-humorados” que você escreveu para o extinto blog da Cosac?

    Abs.

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    1. Camila von Holdefer

      Obrigada pela leitura, Vinícius! 🙂
      Reli esses dois textos do guia faz pouco tempo, porque minha ideia era republicar aqui. No final achei os dois tão horríveis que fiquei com vergonha. Vou tentar reaproveitar a ideia, já que aquilo lá não tem muita salvação. Imagino que a coisa vá virar uma espécie de textão sobre humor na literatura, algo que quero escrever já há algum tempo. Um abraço!

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  2. Roberta

    Oi Camila, adorei a entrevista e decidi checar a resenha, também gostei bastante. O livro parece ser bem diferente! Vai dar para ler nessas miúdas férias! Beijos!

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  3. Jusberto Cardoso Filho

    Olá gostei da entrevista, estou ak plugado em Ouro Preto, pensando na difícil relação estética e arte, a carnavalização de nossas relações , no que tange o Brasil, isso me fez , não sei porque pensar no novo livro de Eduardo Gianneti da Fonseca, deu uma entrevista na Revista Trip, o intelectual brasileiro cai no individualismo, no intelectualismo e no anarco-capitalismo…. é um dilema que Gianneti coloca muito bem, tupi or not tupi e as verdades tropicais de Caetano Veloso sendo questionadas anos após seu lançamento… è isso aí, seu blog é boa prosa…

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