Digam a satã que o recado foi entendido – Daniel Pellizzari

“Desembarquei na Irlanda para passar algumas semanas. Um mês e meio, no máximo. Tenho vinte e sete anos, algumas economias e nenhuma ambição ou perspectiva para o futuro além de talvez partir em seguida para algum outro país, talvez a França, talvez para ficar mais tempo. Graças ao milk-shake perfeito e a um pouco de tinta preta, tudo mudou. Chega de talvez.
Vou ficar.”

1) Em uma de suas andanças por Dublin, Magnus Factor, o personagem central de Digam a satã que o recado foi entendido, entra inadvertidamente em um lugar chamado Bleu Note — segundo o próprio Magnus, “um nome afrancesado para um pub irlandês dedicado a um estilo musical americano e frequentado por eslavos”. 2) Na Irlanda pré-cristã, Crom Cruach foi uma deidade associada à fertilidade. Conta-se, com ou sem razão, que alguns sacrifícios humanos foram feitos em seu nome. Crom Cruach teria sido derrotado por São Patrício e banido de seu território — em outras palavras: como ícone de uma crença pagã, foi demonizado pelo cristianismo. Décadas mais tarde, no novo romance de Daniel Pellizzari, um irlandês lunático decide criar a própria seita new age. Crom Cruach, resgatado para se tornar uma espécie de figura principal da nova doutrina, divide espaço com extraterrestres e anjos monstruosos.

Os dois exemplos pontuais servem de gancho para evocar o cenário de Digam a satã que o recado foi entendido. Estamos em uma fervilhante capital europeia no final da primeira década deste século. A enorme variedade de apelos, a velocidade das mudanças e a incerteza dos rumos contribuem para certa desorientação. Transtornos de identidade, crise dos sentidos, distúrbios de personalidade e choques de crenças não são estranhos ao tempo — e são potencializados pelo espaço. Sem deixar de lado o humor — mas sublinhando que o sentimento dominante é o desconforto —, Pellizzari transpõe para as páginas do livro nossa caótica e acelerada era.

O mundo inteiro está ao alcance da mão e à mercê da experimentação. Com seus inúmeros imigrantes, sua história e sua infraestrutura, Dublin força ao limite as possibilidades do multiculturalismo. Personagens de diversas nacionalidades cruzam continentes com rapidez e facilidade — por isso o pub Bleu Note é um bom exemplo do quadro geral. Passado e futuro se misturam, e há estranhas maneiras de combiná-los. Num bar feito sob medida para que pareça tipicamente irlandês — a tal ponto que o efeito, a essa altura, é artificial —, o som ambiente é um “remix Eurodance de músicas folclóricas”. Já não é possível desprezar a tecnologia, e há pouca diferença entre o online e o offline — a namorada de Magnus, prevendo que ele não a escutaria, termina o relacionamento através de um e-mail escrito em fonte Comic Sans cor-de-rosa. Menções a videogames (Pellizzari assina uma coluna sobre o assunto na Folha de S. Paulo) são frequentes — em dado momento, um personagem se diz devoto da empresa Nintendo. Na dada crise de fé, devotar a vida à Nintendo não parece tão ruim. As religiões cristãs sentem sua supremacia arrefecer. Utilizando elementos de várias doutrinas, é possível criar a própria seita e procurar converter os desavisados.

O romance não traz um único narrador. Pelo menos seis personagens ganham voz em capítulos alternados. Como Jennifer Egan em A visita cruel do tempo, o autor escreve em primeira, segunda e terceira pessoa. Há, entretanto, duas diferenças principais em relação ao livro vencedor do Pulitzer de 2011. Apesar da multiplicidade de pontos de vista, nenhum dos capítulos de Digam a satã que o recado foi entendido tem autonomia fora do todo — ainda que o todo, aqui, seja bastante heterogêneo. Enquanto Egan cobre uma boa fatia de tempo e espaço, o foco de Daniel Pellizzari é preciso: a Irlanda, num período que se estende de 2007 a 2009.

Não é possível determinar a nacionalidade de Magnus Factor, figura que funciona como um eixo ao qual se conectam diferentes personagens do romance. Sabe-se que ele não cresceu em Dublin, uma vez que, de passagem pela cidade, decide, sem mais nem menos, permanecer ali. Uma garçonete loira que tinge o cabelo de preto e um milk-shake perfeito contribuem para a decisão impulsiva de Magnus. A garçonete é a eslovena Stefanija, com quem ele inicia um relacionamento. Para se manter na nova cidade, Magnus abre o próprio negócio. Com Barry, um sujeito que é o mais próximo de um amigo que ele consegue encontrar na capital irlandesa, funda uma curiosa empresa de turismo. Seu ramo são os “tours por locais supostamente mal-assombrados de Dublin”. Supostamente: todos os acontecimentos macabros evocados nos passeios são fruto da imaginação de Magnus e Barry.

Nesse ponto, há uma explicação sobre a rede de proteção que os sócios lançam para que sua fraude não seja desmascarada. Vale tudo, desde impedir que dublinenses estejam presentes nos tours até exigir algum respeito pela hipotética memória dos mais velhos, que, em dado momento, teriam presenciado ou ouvido falar de certas cenas. O poder do compartilhamento de textos e imagens em tempo real não é levado em conta, algo que, no período em que a história se passa, é uma realidade incontornável. Com a internet, é pouco provável que a farsa se sustentasse por muito tempo. De todo modo, Zbigniew e Seewoosagur, o primeiro natural da Polônia e o segundo das ilhas Maurício, são convocados para auxiliar no esquema. Ambos têm, ainda que de forma indireta, um papel importante na trama.

Pouco a pouco, e por caminhos inesperados, um segundo núcleo se liga ao primeiro. É aí que surge Demetrius e sua seita new age, uma miscelânea absurda denominada Senda do Lúmen Serpentino. A já citada maluquice inclui mitologia gaélica, naves espaciais e auras coloridas. O capítulo narrado por Demetrius corresponde ao experimento em segunda pessoa, no qual, aliás, Pellizzari se sai muito bem. Perturbado, o personagem fala consigo mesmo — e, é claro, nada do que diz faz sentido. Bastam poucas linhas para que se diagnostique Demetrius como esquizofrênico, paranoico e obsessivo-compulsivo. O Lúmen Serpentino não é exatamente popular, e apenas uns poucos jovens decidem se juntar ao líder delirante e acolher suas ideias bizarras. Uma é Siobhan, uma mulher que, até certo ponto, parece determinada a acreditar em tudo aquilo. Outra é Patricia, uma adolescente de doze anos que se sente tão infeliz que pensa em cometer suicídio no alto de uma montanha gelada. Nos capítulos narrados por Patricia, é extraordinária a habilidade do autor para se anular, e, assim, soar efetivamente como uma adolescente confusa.

Menos explorado, um terceiro núcleo inclui Laura, uma jovem com quem Magnus se envolve, e seus companheiros do Trevo Negro — um grupo de atuação política que resume seu posicionamento usando a vaga definição de “anarquismo ontológico”. Um dos capítulos, este narrado em terceira pessoa, relata o momento em que dois integrantes do Trevo Negro tentam vandalizar alguns símbolos da Irlanda para chacoalhar a classe média acomodada do país. Rod (um brasileiro) e Marcel têm pouco interesse na missão que deveriam cumprir. Enquanto se atrapalham com um pé-de-cabra e uma lanterna, preferem discutir uma das bases do existencialismo: a legitimidade do livre arbítrio.

Os três núcleos, no final, convergem para um desfecho imprevisível. Algumas pistas são lançadas aqui e ali, mas não são suficientes para que o leitor (mesmo o mais atento) faça certas conexões. O ritmo da narrativa depende do personagem que assume o comando. O capítulo de Barry, um dos mais longos, é vertiginoso. Ao assumir a voz do nativo da “República de Cork”, Pellizzari emprega muitas gírias e abandona o uso de plurais. “Jesuis” e “parcêro” são as duas palavras que mais aparecem no monólogo de Barry. Já o capítulo em que Zbigniew ganha voz, por outro lado, é ao mesmo tempo desacelerado e angustiante.

O que se percebe é que a era moderna traz à tona o pior de alguns personagens. Barry é um sujeito racista, xenofóbico e machista que abraça a falta de sentido — e por pouco não esbarra na ausência de moral. O mundo acelerado contrasta com a personalidade prudente de Zbigniew, tornando dolorosa a diferença entre exterior e interior. No fundo, todos são outsiders que, num mundo caótico e mutante, procuram algo em que se agarrar. Alguns se aferram a crenças excêntricas; outros, a um relacionamento improvável. É o avô de Patricia quem diz que “o destino de todo mundo é virar idiota”. Segundo o velho, “algumas pessoas percebem, outras não, mas todas acabam virando idiotas”. Em todo caso, o importante é ser “um idiota extraordinário”. Todos os personagens de Digam a satã que o recado foi entendido são, felizmente, idiotas extraordinários.

Digam a satã que o recado foi entendido integra a coleção Amores Expressos (Companhia das Letras), da qual fazem parte Cordilheira (Daniel Galera), Do fundo do poço se vê a lua (Joca Reiners Terron), Estive em Lisboa e lembrei de você (Luiz Ruffato), O filho da mãe (Bernardo Carvalho), O livro de Praga (Sérgio Sant’Anna), Nunca vai embora (Chico Mattoso), O único final feliz para uma história de amor é um acidente (João Paulo Cuenca) e Ithaca Road (Paulo Scott) — este último, como o de Daniel Pellizzari, acaba de chegar às livrarias.

Não é simples determinar a identidade do satã do título. Satã pode ser o aspecto explosivo de uma personalidade que assume o comando quando uma escolha temerária é feita. Satã pode ser quem, com a imposição de sua vontade, anula a do outro. Satã pode ser o sentimento generalizado de incerteza. Pode ser que satã dê as caras justamente quando a ilusão do livre arbítrio se quebra (e ela invariavelmente se quebra). Em todo caso, há mais de um satã — que muitas vezes é uma face diferente do mesmo.

Sobre redes sociais:

“Como seguir vivendo se todo momento é agora, se todo lugar é aqui, se todo pensamento é compartilhado, por mais insignificante que seja? (…)
Eram apenas figurinhas num banco de dados dedicado a gerar receita com publicidade. Uma horda ávida por tagarelar sem ponderação alguma, emitindo opiniões compulsivas sobre qualquer coisa como se esse desespero servisse para confirmar sua existência. Discussões em que o único objetivo é vencer, sem nenhum espaço para a empatia, nenhum sinal de reconhecimento do outro. Vence quem posta o primeiro comentário ou afeta o descaso mais sarcástico, a ironia mais rasteira, substituindo qualquer vestígio de emoções humanas genuínas. Uma vida inteira reduzida a um jorro de texto que não passaria pelo crivo do filtro de spam mais rudimentar.”

4 Comments Digam a satã que o recado foi entendido – Daniel Pellizzari

  1. Adriana

    Que máximo, Camila!
    O do Paulo Scott deve ser muito bom também…
    Li o Habitante Irreal e amei!

    Beijos e obrigada,

    Adriana

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  2. v.

    Fiquei com uma baita vontade de ler esse livro. Pelo lance das girias, me pareceu uma influencia boa do irvine welsh, que o pellizzari traduziu com o galera, se nao me engano. Posso estar erraxo quanto a essa infliencia, no entanto. Adorei o trecho sobre as redes sociais, no entamto me reconheci as vezes nesse trecho, quando exponho pensamentos que… Bem, nao servem para muita coisa. Heh. Mais um para a lista deliteratura brasileira a ser lido.

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  3. v.

    Ah e… Der devoto da nintendo nesses tempos… Melhor idolatrar algum deus morto tipo ra ou amon… Talvez algum mais novo como odin ou zeus, mas… A nintendo? Tsc tsc.

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