É você o veado?

Três livros fundamentais publicados nos últimos meses.

Três protagonistas que se descobriram gays e enfrentaram as consequências dessa descoberta. Três romances que se ajustam bem à noção de come of age, nas duas acepções do termo — tanto a que acompanha a passagem da infância ou adolescência à idade adulta quanto a que revela um aprendizado ou amadurecimento tardio.

Três narrativas em primeira pessoa que apresentam, mais do que o simples resgate de memórias, a reconstrução de uma linguagem do passado. O procedimento é mais nítido em O fim de Eddy, do francês Édouard Louis, calcado na reconstituição do vocabulário da infância de Eddy — um vocabulário muito diferente daquele que adquiriu e refinou quando deixou o vilarejo em que nasceu. O que te pertence, do norte-americano Garth Greenwell, retoma dois períodos importantes da vida do narrador, um deles marcado por um idioma estrangeiro. Cloro, do brasileiro Alexandre Vidal Porto, é o relato de um homem que acaba de morrer.

Três livros que têm a incompreensão, tanto a que aliena os protagonistas de si mesmos quanto a que os distancia dos outros, como uma espécie de ponto de partida. A linguagem resgatada, afinal, é sempre a da intolerância, seja em O fim de Eddy, em O que te pertence ou em Cloro. Muito antes de saber quem são e o que desejam, os narradores têm de assimilar ofensas cujo sentido não conseguem entender de todo. Só sabem que não devem se tornar o que quer que aquelas palavras signifiquem.

“É você o veado?”, perguntam dois brutamontes no colégio de Eddy Bellegueule, narrador do autobiográfico O fim de Eddy, antes de uma sessão de espancamento. As agressões físicas se tornariam rotineiras, precedidas pelos insultos de praxe. Mais do que ferir, diz Eddy, as palavras estigmatizam. “A gente nunca se acostuma às ofensas.” E elas são muitas: bicha, bichinha, boneca, mocinha, mulherzinha, boiola, baitola, putinha, invertido, queima-rosca, bambi, soca-bosta, maricas, tia velha.

O tom do relato é dado ainda no início. “De minha infância não guardo nenhuma lembrança feliz”, conta Eddy. “Com isso não quero dizer que eu nunca tenha, durante aqueles anos, experimentado um sentimento de felicidade ou alegria. Mas o sofrimento é simplesmente totalitário: ele faz com que tudo que não se enquadra no seu sistema desapareça.”

Eddy Bellegueule nasceu em um vilarejo operário de cerca de mil habitantes no norte da França, um lugar, como ficará claro, “onde havia pouco espaço para a diferença”. Embora a ação se passe na década 1990, parece “fora do alcance da passagem do tempo”; tudo ali está “distante do movimento e da agitação”. Ninguém sonha com algo melhor do que um trabalho na fábrica. A Eddy, ao contrário de tantos outros, é negada qualquer possibilidade de fuga imediata, qualquer chance de se anestesiar a fim de tornar a privação e o desconforto cotidianos menos dolorosos. São as características que o distinguem da maioria que tornam as coisas mais complicadas. “A fumaça era irrespirável por causa das surras, a fome era insuportável por causa do ódio do meu pai”, escreve.

Naquele meio, o mais importante era ser um “durão”. Para ser um dos durões do vilarejo, “que encarnavam todos eles os tão celebrados valores masculinos”, era preciso, em primeiro lugar, gostar de beber e brigar. Até as mulheres aderiam a um conjunto de práticas semelhantes. “No vilarejo”, no entanto, “não bastava ser um durão, era preciso também saber fazer de seus filhos durões. Um pai reforçava sua identidade masculina por meio de seus filhos, aos quais ele devia transmitir seus valores viris.” Para o pai de Eddy, inconformado com o que chama, estupidamente, de “os ares” do filho, “era seu orgulho masculino que estava em jogo”. Numa mistura de ignorância profunda e crueldade deliberada — causa e efeito da glorificação da virilidade, respectivamente —, o pai agride Eddy tanto quanto os colegas no colégio.

É nesse aspecto que O fim de Eddy se aproxima de Billy Elliot, o filme de Stephen Daldry. Em uma cidadezinha inglesa organizada em torno da mineração, Billy esbarra em ideais provincianos de masculinidade ao descobrir o balé clássico. Já Eddy quer ser um durão, mas sabe que “a gente não muda assim facilmente”. Com muito esforço, ele passa a “mimetizar as características masculinas”: vê luta livre, contém os movimentos das mãos ao falar, finge interesse pelo futebol, ensaia uma voz grave. O principal: faz questão de ser homofóbico. “Reafirmava mais e mais meu ódio aos homossexuais, de forma a manter as suspeitas longe.”

Aludindo ao processo de escrita do livro, Eddy confessa se sentir “exausto de tentar reconstituir a linguagem que […] então utilizava”. É palpável a luta contra um passado não muito distante, mas que já parece totalmente alheio à pessoa que se tornou. E é pela honestidade brutal e pelo domínio técnico — indissociável dessa busca por um vocabulário que já não utiliza e que agora parece não só deslocado como chocante — que O fim de Eddy transcende o mero acerto de contas. Na maior parte do tempo, contudo, o olhar do narrador não é o de quem entende, e portanto perdoa, aquilo que a falta de instrução e o desespero ajudam a explicar. O julgamento é implacável.

Eddy era um estranho na família — cujos membros descreve com uma crueza marcada pelo afeto, mas sobretudo pela mágoa — e no vilarejo, o que o leva a buscar fora dali algo a que se agarrar. Se não escapasse, rejeitando por completo os antigos valores, Eddy dificilmente sobreviveria. A tábua de salvação é o teatro, que lhe garante primeiro uma bolsa de estudos num liceu, depois o ingresso no ensino superior. No novo ambiente, Eddy descobre que sofreu mais do que qualquer outro, e que “algo faltava àqueles que só conheceram o conforto, sem jamais passar necessidade ou humilhação”. Quando vê seus novos colegas privilegiados, garotos com “outros hábitos corporais”, outras roupas e outros modos, Eddy não tem dúvidas: “Que bando de veados”. No final, ele muda o nome para Édouard Louis. Afinal, “Eddy Bellegueule é um nome difícil de carregar”.

O narrador sem nome de O que te pertence também foge. Já adulto, deixa os Estados Unidos para lecionar inglês em um colégio privado na Bulgária. Como leva consigo algumas boas lembranças, os laços com pessoas e lugares não são cortados de todo.

O encontro do narrador com Mitko, um garoto de programa de vinte e três anos nascido em Varna, na costa do mar Negro, acontece nas primeiras páginas do livro. Do início ao fim, o relato oscila entre a difícil relação dos dois homens e as memórias de infância do protagonista. É Mitko quem está mais próximo de Eddy Bellegueule, tendo conhecido privações das quais o narrador, filho da classe média suburbana, foi poupado. Ao contrário de Eddy, no entanto, Mitko não consegue fugir da pobreza — é como se a fuga, que parecia uma possibilidade no passado, se tornasse mais improvável a cada dia. O búlgaro é descrito como um sujeito maltrapilho, um “homem mais ou menos sem-teto”. A comunicação entre Mitko e o narrador nem sempre é fácil, e a retomada de expressões no idioma estrangeiro constitui uma parte importante da narrativa. O que determina e dificulta a relação, no entanto, são as diferenças socioeconômicas.

Ao narrador importam os cenários, as impressões e as atmosferas — tudo aquilo que é capaz de captar ora como observador distanciado, ora como ator profundamente impactado pelo desenrolar dos eventos. É essa captura ambígua e mutante que transparece no relato. Mitko parece “ao mesmo tempo superexposto e escondido por trás de fortificações intransponíveis”, e tanto a personalidade quanto a trajetória do búlgaro são reveladas a partir do olhar narrador.

A consciência de que toda a relação é uma mera transação comercial — com um contrato não escrito que estabelece as diferenças de saída — atravessa as atitudes dos dois homens. Quando quer obter algo, em geral dinheiro, Mitko usa a chantagem e a intimidação velada. Em dado momento, ameaça revelar a homossexualidade do narrador, a quem chama de “pederasta”, um termo deslocado. O narrador, porém, não tem nada a esconder. “Era uma ameaça num mundo diferente, no mundo dele talvez, mas não no meu.” O mundo de Mitko, que precisou ocultar um relacionamento juvenil com outro rapaz, de fato é diferente.

Ao narrador é dada a possibilidade de se insurgir contra o que o força a manter sigilo e a sentir vergonha. Como em O fim de Eddy e em Cloro, a reconstrução da linguagem da intolerância — uma linguagem em boa parte associada às memórias dos primeiros anos dos protagonistas — é fundamental em O que te pertence. Quase não há quebras de linhas nas passagens em que o narrador relembra a infância; tudo é construído para simular um desabafo urgente e angustiado. Naquele tempo, no início da pré-adolescência, o pai o confrontou com trechos de um diário lido sem permissão, e que sugeriam o afeto do narrador por um colega. Era, segundo ele, “como se [a homossexualidade] fosse algo que eu pudesse desmentir e consertar”, quando “desmentir significaria negar a mim mesmo”. Mais do que raiva, o que transparece nas palavras do pai é o desdém. “Uma bicha”, diz ele, “se eu soubesse, você nunca teria nascido.” Chorando, o narrador escuta a série de ofensas. “Enquanto eu o ouvia dizer essas coisas era como se, por mais que defendesse meu direito de existir, eu descobrisse que não havia nada a defender, ou quase nada, como se eu estivesse me dissolvendo e minhas lágrimas fossem o sinal externo dessa dissolução.” Depois disso, ele se recolhe a uma solidão da qual, diz, nunca emergiu. Sobrou a raiva, que “me preenchia como algo que não se dissolveria”. Sem a raiva, confessa, “eu teria perdido a mim mesmo por completo”.

A cena mais dolorosa de O que te pertence, e que resume de forma brutal os três livros, se passa em um McDonald’s. Sentado com Mitko, o narrador vê a sala reservada para festas infantis. Ali estava “todo um mundo moldado para um tipo de despreocupação que eu duvidava que tivesse alguma coisa a ver com a infância, uma despreocupação que eu não conseguia lembrar de ter sentido”. Ele se refere à sensação de ter algo a esconder, algo constrangedor, que precedia a própria consciência da natureza desse algo. É um ponto em comum com O fim de Eddy: as ofensas despejadas pelos próprios adultos, numa tentativa de antecipar e corrigir algo que não pode ser mudado.

São os detalhes que fazem a diferença na escrita de Greenwell. Em O que te pertence, as estações do ano nunca são o que deveriam ser: há sempre algum elemento incongruente na primavera ou no inverno, como um vento frio ou um calor incomum. Em momentos críticos e desesperadores, o narrador presta atenção a um cachorro ferido, a uma mosca, a um cavalo maltratado. Faz isso porque sabe que “é difícil olhar as coisas, ou olhá-las de verdade”. Afinal, “é muito fácil desviar os olhos”. Um dos maiores trunfos da narrativa de Greenwell é, talvez, o destaque que dá a essa a necessidade de exercitar o olhar. Citado em várias listas dos melhores livros publicados nos Estados Unidos em 2016, o que se pode estender para o Brasil neste ano, O que te pertence é sobretudo um romance de estreia escrito com inacreditável domínio técnico.

Numa noite frustrante ao lado de Mitko, o narrador retira da estante um livro de Konstantinos Kaváfis, poeta citado na epígrafe de Cloro. Constantino é também o nome do protagonista do livro de Alexandre Vidal Porto.

Na cena do livro de Greenwell em que a coletânea de Kaváfis aparece, o narrador quer encontrar algum poema que “redimisse” a noite com Mitko, que “maquiasse o que parecia cada vez mais a sordidez dela”, que restaurasse “algo como a nobreza em meio à insipidez do desejo”. Talvez haja algo desse mesmo desejo em Cloro.

“Muitos acham que eu fui um canalha”, começa Constantino. O advogado de cinquenta e um anos acaba de morrer, e é na morte que seu maior segredo vem à tona — Constantino, pai e marido, tem um ataque cardíaco fulminante em uma sauna gay. Tudo indica que ele está no limbo, “perdido e desorientado num vazio absoluto”. Cloro é um acerto de contas, o relato de uma vida inteira que, no entanto, se detém nos últimos anos, quando a narrativa desacelera e as descobertas se intensificam. Como os eventos que Constantino repassa já ficaram para trás, ele pode ser honesto pela primeira vez. O aparente distanciamento, recurso intencional usado por Vidal Porto, está ligado à mesma noção.

A trajetória de Constantino também começa com a linguagem da intolerância. Lá está a palavra cujo significado não era, naquele momento, inteiramente claro.“Um dia me chamaram de bicha”, lembra Constantino. “Foi uma ofensa definitiva, que ficou ecoando para sempre na minha cabeça.” Ele tinha oito anos e pensou em suicídio. O menino que o ofendeu, Marcos Bauer, também o imitava. “Durante muitos anos, agradeci a Marcos Bauer o alerta antecipado. Ele me serviu de aviso de que ser bicha não era bom. Tive tempo de me preparar.” Além das ofensas de Marcos Bauer, o que Constantino guarda é a memória sensorial do cheiro de cloro no corpo do professor de natação. “Concluí que ‘bicha’ e o que eu sentia quando o professor de natação me abraçava — e que eu instintivamente escondia — estavam relacionados.”

Constantino se casa e se torna um advogado de sucesso. O sexo com a mulher “era um dever doméstico, como lavar os pratos ou tirar o lixo”. Durante boa parte da vida, Constantino luta contra “aquele sentimento que preferia chamar de ‘curiosidade’”. Nunca teve amigos íntimos e sempre se sentiu estranho ao lado de homens. Afinal, “é difícil ser espontâneo quando se tem medo”.  

O autodescobrimento tardio de Constantino, que começa com um aplicativo de encontros no celular, sugere que ele poderia ter se libertado em algum momento — não fosse a morte interromper o mergulho em si mesmo. Os eventos também se desenrolariam de modo distinto se Constantino tivesse nascido em outro tempo e lugar, o que ecoa O fim de Eddy e O que te pertence. “Se tivesse nascido trinta anos depois, talvez as coisas tivessem sido diferentes”, diz. Mais do que os dois outros livros, Cloro questiona a ideia de determinismo e de livre-arbítrio. Havia outra escolha para Constantino? Sim e não. “Tem gente que passa a vida fugindo de uma coisa sem compreender que não existe fuga possível, que não adianta lutar, não adianta querer ter controle.”

É justamente uma metáfora, recurso tão utilizado por Constantino para justificar as decisões que toma e demonstrar aquilo que sente, que pode explicar a escrita de Alexandre Vidal Porto. Ler Cloro é como observar, da beira da água, um nadador cujos movimentos são imediatamente reconhecíveis, da respiração ao bater de pés. Mas há as correntes que se animam abaixo da superfície, e é ali, naquilo que o observador só pode intuir, que está a mágica da escrita. Não é uma escrita contida, nem uma escrita que procura desviar do que há de cru e de brutal. Mas é uma escrita que se passa além dela, da qual o leitor, ou espectador, deve preencher as lacunas e os silêncios, identificando os fluxos que se passam logo abaixo. O procedimento é visível quando o narrador se detém na figura do cunhado — quando o observa sair do banho ou quando relata a difícil comunicação entre os dois. Boa parte do significado, ainda que muitas das imagens sejam explícitas, reside no não dito.

Como em O fim de Eddy e O que te pertence, Cloro também vai pautar a autoaceitação. É do livro de Alexandre Vidal Porto que vem a melhor imagem, uma metáfora que fala da sensação de pular do trampolim para uma piscina logo abaixo. “O salto não precisa ser ornamental”, diz o narrador, “mas não tem volta.”

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