Grandes são os desertos, e tudo é deserto (ou: por que Bússola é o melhor livro publicado em 2018)

Acordo de noite subitamente
E o meu relógio ocupa a noite toda.

Não sinto a Natureza lá fora.
O meu quarto é uma coisa escura com paredes vagamente brancas.
Lá fora há um sossego como se nada existisse.
Só o relógio prossegue o seu ruído.
E esta pequena coisa de engrenagens que está em cima da minha mesa
Abafa toda a existência da terra e do céu…
Quase que me perco a pensar o que isto significa,
Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da boca,
Porque a única coisa que o meu relógio simboliza ou significa
Enchendo com a sua pequenez a noite enorme
É a curiosa sensação de encher a noite enorme
Com a sua pequenez…

Caeiro

 

Bússola contém as divagações de uma madrugada insone de um erudito de meia-idade. Para Franz Ritter, o travesseiro é um “profundo pântano de angústia”. Símbolo da aflição noturna dos atormentados e ansiosos, o travesseiro desata ou intensifica o monólogo febril da narrativa. Poucas ações são imediatas. No presente, frustrada a tentativa de manter o corpo imóvel na cama, Franz manuseia livros e objetos, prepara e bebe um chá, relê e-mails. O espaço dessas atividades banais não excede o perímetro do apartamento em Viena, e a duração não é superior a oito horas.

Para escapar “da noite que avança, da doença que progride, da cegueira que nos invade”, Franz busca sobretudo a lembrança de Sarah, ou antes a persegue e evita na mesma medida. O impulso conflitante não é estranho à narrativa: Bússola é um romance feito de forças e elementos em desacordo que podem ou não ser reconciliados ou aproximados, e dos quais é possível extrair, em alguns casos, um denominador comum. Boa parte dos eventos, intenções, movimentos e ideias surgem acompanhados de uma contraparte — e não raro de um negativo. A lembrança de Sarah, que serve de amuleto ao mesmo tempo em que realça uma ausência dilacerante, é um bom exemplo.

E o narrador tem necessidade de um amuleto como nunca antes. Ocupando ora o centro, ora a periferia da consciência de Franz está a decadência do corpo — anunciada por uma doença que pode ser tanto imaginária ou exagerada quanto real e ameaçadora. Enquanto as horas passam, Franz deseja fugir do “medo [e do] desespero na solidão absoluta do corpo”. Tudo em Bússola ecoa “a discrição de Deus no silêncio da noite”. É da solidão e do silêncio, tanto quanto de um sofrimento que exclui a possibilidade de redenção, que nasce a vontade de transcender o momento presente. Resgatando lembranças e leituras, embalado pela própria voz, Franz transita por diversos países e séculos.

 

Declaração e prece

 

A música desempenha — através da teoria musical e de episódios da vida de compositores — um papel-chave no desdobramento de outros elementos e relações do repertório de Franz. A ocasião em que Beethoven tocou diante de uma plateia sem saber que desafinava, consequência da perda auditiva, leva o narrador a elaborar um paralelo com as declarações de amor: quem se declara, acredita ele, também toca sem perceber que o piano está desafinado. É a primeira maneira de enxergar o monólogo de Bússola: como uma declaração de amor.

Como a declaração que é, a narrativa musical erra as notas de propósito. Em algumas ocasiões, semiadormecido ou febril, Franz sonha e delira. Há pausas e hesitações que lembram ao leitor, através das atividades banais no interior do apartamento, que o relato de Franz está estruturado no tempo. Existe um motivo para que a passagem das horas não seja esquecida: para Franz, que aprendeu com o avô a admirar o mecanismo dos relógios, a musicologia “está para a música assim como a relojoaria está para o tempo”. E nenhuma arte depende tanto do tempo quanto a música.

O que Franz ama na música — além de ver nela “um belo refúgio contra a imperfeição do mundo e a decadência do corpo” — é justamente “a passagem, a transformação”. Enxergando a beleza das variações e transições, Franz, um musicólogo orientalista, dá o tom de um livro que depende da diferença e da mudança. A velha ideia da música como linguagem universal é, assim, absoluta no livro. Na noite de insônia, quando se encontra “tão desamparado […], sem o consolo da fé” e sem amor, Franz pensa que talvez a música seja sua verdadeira paixão.

Franz é fascinado pela voz do muezim, a que convoca os muçulmanos para as orações. Depois de uma viagem de estudos pelo Oriente Médio, o protagonista passa o resto da vida tentando “captar o sentido desse grito”. Apesar do agnosticismo declarado de Franz, o monólogo sugere uma busca de dimensão espiritual, “a busca pela centelha mística”. No apartamento, Franz examina uma bússola incomum, um presente de Sarah: réplica da que pertencia a Beethoven, a bússola aponta para o Leste. O Leste de Franz é o Leste de Avicena, aquele do qual emana “luz aviceniana do Todo”.

Reforçando o sincretismo que marca a narrativa, é a um santo católico, São Benoît, “padroeiro dos agonizantes”, que Franz recorre ao fazer uma espécie de oração — a segunda maneira de enxergar o monólogo de Franz é, portanto, como uma prece. São Benoît também é “o santo da passagem, aquele que faz atravessar os rios, que levou Cristo de uma margem à outra, padroeiro dos viajantes e dos místicos”. Não há santo mais adequado a Bússola.

 

Alteridade

 

Num livro narrado por um homem sozinho no próprio apartamento, o que importa é o deslocamento e o intercâmbio contínuos. Para Franz, os viajantes não costumam ver nada além de si mesmos. “Acreditam ver, mas só observam os reflexos”, diz. Seu monólogo pretende denunciar a disposição de enxergar no outro um espelho, mas acaba se tornando uma amostra da mesma tendência: o próprio Franz comete o erro de ver em Sarah, também ela uma acadêmica orientalista, apenas aquilo que deseja.

A alteridade, tema caro ao livro de Mathias Enard, é desenvolvida sobretudo a partir de e no interior da oposição entre o Oriente e o Ocidente. Para Sarah, “o que se considera puramente ‘oriental’ é, na verdade, e muitas vezes, a repetição de um elemento ‘ocidental’ modificando, por sua vez, outro elemento ‘oriental’ anterior, e assim por diante”. A visão segundo a qual “o Oriente e o Ocidente nunca aparecem separadamente, [mas] estão sempre misturados, presentes um no outro” atravessa Bússola. Enard imprime nos personagens a noção de que nossa ideia de Oriente é “uma representação, uma interpretação”, “uma construção conjunta, um trabalho complexo do tempo em que o imaginário se superpõe ao imaginário”. Podemos ir mais longe e ver no Oriente “uma construção imaginária, um conjunto de representações em que cada um, onde quer que esteja, se serve do que quiser”.

Franz e Sarah — como Mathias Enard — falam árabe e persa e transitam com frequência pelos cenários que mantêm alguma relação com aquilo que estudam. Todos os personagens de Bússola se deslocam entre o Ocidente e o Oriente, mapeando as influências mútuas ao mesmo tempo em que influenciam e se deixam influenciar. Emergindo dos movimentos conscientes e inconscientes que compõem o monólogo de Franz, esses personagens, quase todos figuras reais, são escritores, poetas, músicos, arqueólogos, compositores, acadêmicos, religiosos, diplomatas, militantes. Representando a literatura francesa há Balzac, Flaubert e Proust — que, de acordo com Franz, faz mais de duzentas alusões ao Oriente e às Mil e uma noites ao longo de Em busca do tempo perdido. É fácil se perder no meio de tantos nomes, pseudônimos e apelidos, locais e datas. E a proposta de Enard é justamente essa: aludir a uma bússola em um livro dentro do qual o leitor deve forçosamente se perder. Como uma bússola, o romance também dá uma volta completa: o monólogo de Franz vai se encerrar com a epígrafe.

Sarah simpatiza com os orientalistas por conta do que vê como “uma tristeza selvagem” tratada “na erudição, nas viagens imaginárias ou nos paraísos artificiais”. Para ela como para Franz, “aquilo que por muito tempo tinha sido chamado de loucura, melancolia, depressão costumava ser o resultado de uma rusga, em contato com a alteridade, uma perda de si mesmo na criação”. Do início ao fim de Bússola, Enard propõe a “aceitação da alteridade como parte integrante de si mesmo, como contradição fecunda”. Afinal, somos “capazes, quem sabe, de nos transformarmos em contato com a alteridade”.

Essa troca também se dá através do desequilíbrio e da ruptura. As relações apresentadas em Bússola são moldadas e atravessadas por uma série de forças, muitas delas conflitantes ou antagônicas. Não raro determinadas pelas consequências do colonialismo, as forças da política, da religião e da economia determinam a maior parte das trocas e experiências. O intercâmbio mais profundo — que não passa de uma tentativa, às vezes bem-sucedida, de reconhecimento — depende de uma série de fatores. Pode ser a música que une dois personagens de origens distintas, mas pode ser o vinho, o ópio ou a poesia. Uma noite estrelada e algumas histórias unem três acadêmicos europeus a um ancião beduíno, embora certo estranhamento se preserve. O que importa em Bússola são, no fundo, as possibilidades — o entrelaçamento contínuo de possibilidades.

 

Essa neve caindo no deserto

 

A certa altura, Franz lembra das Canções da madrugada de Schumann, idealizadas num momento em que o compositor “estava fora de si”. É um claro paralelo com a própria situação. É durante a madrugada que o narrador fala sozinho, ou antes discute com mortos ilustres. Ao conversar com o fantasma do escritor Thomas Mann, Franz evoca uma das cenas de Doutor Fausto em que Wendell Kretschmar analisa a obra de Beethoven. É a deixa para o protagonista evocar o terceiro movimento da opus III — esperado, mas ausente. “Esse famoso terceiro movimento está presente indiretamente. Por sua ausência”, diz. É como a influência de Sarah ao longo de Bússola. Enquanto aguarda aquilo que não chega, Franz identifica “a inutilidade das esperanças humanas”. A expectativa raramente se justifica, e não há possibilidade de redenção em parte alguma. “A esperança majestosa da ressurreição, do amor, do consolo, é seguida apenas pelo silêncio.”

Ao lembrar de um encontro com Sarah, Franz chega à conclusão de que “a magia é um fenômeno raro e passageiro”: é fugaz e nunca plenamente apreensível, seja pela consciência, pela linguagem ou por ambas. Para ele, Sarah é “essa neve caindo no deserto”.

A alteridade entre Oriente e Ocidente desagua na alteridade entre Franz e Sarah, cuja complexidade é intensificada por uma série de nuances. Durante breves momentos, Franz chega a acreditar no amor “como fusão”, ou, no mínimo, no amor que “nos abre para o outro”, algo que, na prática, esbarra na evidente distância entre a Sarah real — de quem, do modo como Bússola é narrado, o leitor não é capaz de se aproximar — e a Sarah idealizada. Franz “tinha investido tanto na espera, construído uma personagem imaginária, tão perfeita que ia, de repente, preencher [sua] vida”. É claro que as coisas não saíram conforme o planejado. Franz sabe, no fundo, que a relação com Sarah — como, no geral, qualquer relação — é feita de “inabilidades, impaciências, rusgas e incompreensões”.

Boa parte do brilho de Bússola emana da figura enigmática de Sarah. Nascida em Paris em uma família judia emigrada da Turquia, adepta do budismo, Sarah alia uma trajetória curiosa a uma personalidade extraordinária. Embora desempenhe o papel da viajante desprendida, no geral estereotipado, e seja apresentada ao leitor através do olhar de um homem apaixonado, Sarah não se encaixa na caricatura da mulher sedutora, manipuladora e volúvel.

Enard acerta ao fazer com que Sarah habite uma esfera fora do alcance do limitado Franz. Não se trata apenas de um outro que será sempre inacessível, mas de algo mais intenso. A personalidade de Sarah é mais intricada do que o narrador pode apreender. Além disso, a lente da idealização — através da qual ele a vê — distorce e afasta. Com exceção de um artigo e de algumas mensagens, o leitor só enxerga Sarah pelo olhar de Franz. Assim, é surpreendente que a personagem, percebida por esse sujeito melancólico e inseguro cuja paixão por ela equivale ou ultrapassa à que o liga à música e ao Oriente, preserve as características de um indivíduo complexo. É um desafio, do ponto de vista técnico, manter uma duplicidade semelhante na escrita em primeira pessoa, sobretudo quando as deformações e lacunas engendradas pelas limitações de um narrador parcial são tão poderosas.

Há uma série de pontos cegos na história de Franz e Sarah, de hiatos e não ditos. Muitos são o resultado de questões estruturais. Isso porque a interação que resulta de qualquer forma de opressão ou desigualdade não escapa a Mathias Enard, o que inclui as relações entre homens e mulheres. Basta prestar atenção ao objeto de estudo favorito de Sarah: as mulheres que, no passado, percorreram o Oriente. São mulheres andróginas, “mulheres que se tornaram escritoras”, mulheres combativas. De Agatha Christie, a dama do crime, que viajou em companhia do marido arqueólogo, à suíça Annemarie Schwarzenbach, abertamente lésbica, que fez da fuga constante um modo de vida, passando por Marga d’Andurain e Lady Hester Stanhope.

Há um frequente questionamento dos estereótipos em Bússola. Um colega orientalista não entende por que razão Sarah, quando criança, gostava tanto de navios, que, “como os trens, tinham sempre sido brinquedos de menino”, de modo que não nunca houve “menina digna desse nome que fosse apaixonada por essas coisas”. Sabemos que Sarah é mais segura e mais corajosa do que Franz, como ele mesmo admite. Sarah acha que Franz é exagerado e afetado, e tem razão. Ao contrário de Sarah, Franz também é antiquado e pudico. Quando ela fala palavrões, ele tem vontade de tapar os ouvidos. Quando um colega acadêmico entrega a ela um diário em que relata encontros com homens e mulheres, “a ideia de que Sarah pudesse mergulhar numa leitura daquelas” parece ao moralista Franz “odiosa”.

Durante um almoço em Paris, Sarah tem de explicar a Franz que o machismo afeta a vida das mulheres acadêmicas de várias maneiras. É o próprio Franz — que talvez não tenha se dado conta das implicações do desabafo de Sarah — quem lembra da ocasião em que os dois visitaram o ex-orientador de Sarah, Gilbert Morgan, no Irã. Alcoolizado, Morgan confessa, para constrangimento de Franz e horror de Sarah, ter chantageado e violentado uma moça iraniana no final da década de 1970. É possível enxergar o livro de outro modo quando Franz passa a minimizar o desconcerto e a tristeza de Sarah, sugerindo que a história abjeta do antigo orientador é, para ela, apenas “uma parábola de imperialismo e revolução”. Para Franz, é “absolutamente deprimente pensar que Sarah é incapaz de ler uma história de amor pelo que ela é, uma história de amor, ou seja, a abdicação da razão na paixão”. Mas não se trata disso, e Enard deixa implícito, nos gestos de Sarah aos quais Franz não dá o devido peso, que outras leituras são não apenas possíveis, mas legítimas. A história de Morgan é obviamente uma história de abuso. Que Franz não saiba disso demonstra a limitação do personagem, mas não a do autor.

Franz vê com desconfiança os estranhos interesses de Sarah. São os “submundos da alma”, nas palavras dele, que a atraem. É significativo que Sarah leve Franz para conhecer a própria cidade, Viena, mas apenas “as entranhas”, como ele mesmo diz — museus macabros que preservam memórias de horrores. Sarah estuda “as criminosas, as traidoras e as envenenadoras”. Para se proteger, e ao próprio afeto que os liga, o narrador supõe que a “obsessão [de Sarah] pela morte e pela perversão, pelo crime, pelo suplício, pelo suicídio, pela antropofagia, pelos tabus, […] não passa de um interesse científico”. A natureza do interesse científico em geral, sobretudo no contexto de Bússola, não necessariamente pode ser definida como neutra; a noção de neutralidade, aliás, é de todo estranha ao livro. O interesse que Sarah demonstra “pelo horror, pelos monstros” — que fica evidente a partir de detalhes que o narrador capta de relance, para logo em seguida desviar o olhar — é intenso e profundo. Franz, no entanto, evita percorrer o lado pouco iluminado de Sarah, relutando em aceitar como genuíno aquilo que abomina ou teme. Algo em Franz o impede de avaliar Sarah por inteiro, embora o caminho para uma possível reaproximação — sugerida ao longo do livro, sobretudo no final — não admita, nesse caso, nenhum desvio.

Além de servir de contraponto ao caráter passivo do protagonista, Sarah desempenha outra função na trama: a de agregadora, ligando pessoas, espaços, eventos e temporalidades. Sarah lê o mundo “como uma sequência de coincidências, de encontros fortuitos que dão significado ao conjunto”. É uma tendência que Franz procura, com sucesso, reproduzir em seu monólogo.

Marcada por uma perda que a abala profundamente, Sarah empreende uma busca espiritual da qual só intuímos alguns aspectos. É provável que seja a perda que a leva a tentar (re)agrupar o que está disperso, produzindo sentidos e rejeitando a noção de aleatoriedade. Franz se pergunta se Sarah “também não teria se perdido, perdido corpo e bens no Oriente como todos aqueles personagens que tanto estudou”. Tudo indica que sim. Quando compreende que ela sofre, o julgamento de Franz se torna mais brando e (possivelmente) mais acertado, quase como se Enard procurasse incluir também um discreto elogio da empatia em Bússola. “É preciso ter a energia de Sarah para sempre se reconstruir, sempre olhar de frente o luto e a doença, ter a perseverança de continuar a revolver a tristeza do mundo para dela tirar a beleza ou o conhecimento”, diz Franz.

O que interessa a Sarah, cuja carreira acadêmica é mais destacada e movimentada que a de Franz, é o “orientalismo como devaneio, o orientalismo como lamento, como exploração sempre decepcionada”. Estão todos perdidos naquele Oriente, e é esse extravio, acima de tudo, que Sarah tenta desvendar, explorar e quem sabe reverter. O “Oriente como resiliência, como busca da cura de um mal obscuro, de uma angústia profunda” é tanto o Oriente das figuras que a interessam como o Oriente da própria Sarah. A tese de Sarah pode, segundo Franz, “ser lida como um catálogo de melancolias, o mais estranho catálogo de aventureiros da melancolia”. Trata-se das “visões do outro entre Oriente e Ocidente”, ou, como Franz prefere, “as diferentes formas de loucura no Oriente”.

 

O orientalismo é um humanismo

 

O apartamento em que Franz atravessa a madrugada insone não fica em Viena por acaso. Enard resgata a fórmula de Hugo von Hofmannsthal, que via a cidade como “a porta do Oriente”. É o lugar fervilhante que Stefan Zweig recorda em “A Viena de ontem”, ensaio incluído em O mundo insone. “O que vinha de fora não era considerado hostil, antinacional, não era arrogantemente rechaçado”, lembra Zweig. Para o narrador de Bússola, a Áustria era a “terra dos encontros, uma terra de fronteira […] rica em contatos e misturas”.

Sarah defende, portanto, que “o orientalismo deve ser um humanismo”. Há, é claro, um ceticismo no ar. O próprio narrador questiona se “a unidade da condição humana ainda pode fundar alguma coisa”. Não parece possível recuperar algo semelhante ao que é descrito por Zweig.

Não há, estranhamente, uma única palavra em Bússola a respeito de Salman Rushdie, contra quem o Aiatolá Khomeini lançou a fatwa em 1989, depois da publicação dos Versos Satânicos. Os autores árabes mais conhecidos, como Naguib Mahfouz, escritor egípcio premiado com o Nobel em 1988, também não são mencionados. Enard dá preferência a figuras menos conhecidas do grande público.

Não deixa de ser uma experiência curiosa ler Bússola à luz de Submissão, de Michel Houellebecq, também publicado em 2015. Lançado na esteira do ataque ocorrido na sede do semanário Charlie Hebdo e vendido como polêmico ao redor do mundo, Submissão mostra o Islã como o outro ameaçador que, em um futuro próximo, vai pouco a pouco estendendo seu domínio sobre a França. O livro de Enard toma, é claro, outro caminho. Dedicado aos sírios, Bússola aposta no entrecruzamento e na transformação, embora reconheça a existência de um “islã radical novo e violento”.

Enard é muito hábil ao promover o resgate de um passado ao mesmo tempo em que o liga, de forma ora sutil, ora explícita, às questões mais complexas do presente. Ao autor interessam sobretudo os séculos de troca entre Ocidente e Oriente — séculos que culminam naquele momento, naquele apartamento em Viena. Cabe, parece sugerir o subtexto do romance, tecer um presente que continue a possibilitar esse intercâmbio. Bússola rejeita veementemente, portanto, a “violência das identidades impostas”, como chamar muçulmano a qualquer um que tenha origem árabe ou turca na Europa. Também critica a “patologia nacionalista” do século 19, que “destrói, devagarinho, as passarelas frágeis construídas antes, deixando lugar apenas para as relações de dominação”. É importante, sugere Enard, rejeitar a “ideia absurda de alteridade absoluta do Islã e admitir não só a aterradora violência do colonialismo como também tudo o que a Europa [deve] ao Oriente”.

 

Saudade

 

É preciso tomar distância e perceber o panorama completo para entender que o que Bússola revela é uma cartografia afetiva, traçada como se a partir de um discurso de livre-associação que não se pode rastrear ou decifrar por completo. A comparação com uma tapeçaria também não estaria deslocada.

A saudade — termo que Enard emprega em português, preservando o devido peso e a sutileza da palavra — é uma das principais forças a atravessar Bússola. No monólogo nem sempre lúcido do protagonista, se sobressaem ao mesmo tempo uma ausência específica e uma melancolia difusa. Enquanto espera o sono que não chega, ciente de que o sono definitivo pode não demorar, Franz Ritter sente saudade. Ele conhece e cita Fernando Pessoa, com o heterônimo Álvaro de Campos: “Grandes são os desertos, e tudo é deserto”. Por algumas horas, Franz pensa em um amor distante e em um Oriente Médio cuja própria ideia ou representação parece corrompida. Além do mais, muitos dos cenários evocados existem, naquele momento, apenas na lembrança do narrador. Recordando o que viveu como estudante no Irã, Franz pensa que a saudade é “um sentimento também muito árabe e muito iraniano”.

No fim das contas, nem a alteridade com o próprio eu é estranha ao romance. Ao buscar Sarah, o narrador também busca a si mesmo — ou a uma parte de si. Relendo algo que escreveu certa vez, Franz Ritter tem a sensação de olhar para um “espelho envelhecedor”. Ele sabe que o tempo é curto e que o que importa, no fundo, é essa neve caindo no deserto. “O ser está sempre nessa distância, em algum lugar entre um eu insondável e o outro nesse eu. Na sensação do tempo. No amor, que é a impossibilidade de fusão entre o eu e o outro. Na arte, a experiência da alteridade.” Elogio brilhante da tolerância, da abertura e do afeto, Bússola é um dos melhores exemplos do que a arte é capaz de fazer.

 

 

[Imagem]

6 Comments Grandes são os desertos, e tudo é deserto (ou: por que Bússola é o melhor livro publicado em 2018)

  1. Guilherme Paes

    Sei que são toscas essas comparações, mas eu gosto de pensar que o “Bússola” é o romance que o “Tia Júlia e o escrevinhador”, do Vargas Llosa, gostaria de ser! Camila, você chegou a pensar a respeito da rusga que os orientalistas do livro tinham com o Edward Said? Ao longo da leitura fiquei esperando acontecer uma aproximação amistosa com o Said e tomei um susto quando vi que os personagens não gostavam dele haha.

    Obrigado pelo texto!

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    1. Camila von Holdefer

      Obrigada pela leitura, Guilherme!
      Adorei a comparação com o Vargas Llosa; diria que você tem razão.
      Como não conheço o trabalho do Said (só de nome), não sei medir ou avaliar as rusgas que os personagens têm com ele. Não tinha prestado atenção a esse detalhe, na verdade, então foi bom você trazer a discussão à tona. Vou prestar atenção numa próxima leitura. Talvez o fato de o Enard destacar essas rusgas, mas isso é só especulação minha, tenha relação com a rejeição a tudo que é mais conhecido do grande público, como no caso do Rushdie e do Mahfouz. Achei muito estranho ele se deter tanto na história recente do Irã e não mencionar a fatwa. Tudo bem que ele cita Flaubert, Proust e Balzac, mas esses três não contam. De resto, ele dá preferência aos nomes e eventos que a maior parte dos leitores não conhece. O que, certo, não explica a rusga. Talvez certa má vontade.

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  2. Gustavo

    Livro-irmão do aneis de saturno, um dos meus prediletos. Achei interessante você falar em “sugestão” para uma possível reaproximação entre os personagens no fim do livro. Eu terminei aquelas ultimas linhas muito emocionado com essa mais que abertura ao reencontro e à compreensão (uma sensação bem diferente – e acho q mais necessaria, no meu contexto brasil 2019 – daquela do livro do houellebecq ).

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    1. Camila von Holdefer

      Interessante a comparação com o Sebald. Acho que existe um componente afetivo no Enard (e não me refiro apenas ao afeto do narrador pela Sarah) que Sebald, pelo menos nesse livro, não ecoa. Queria reler para poder destrinchar melhor isso. Mas ia curtir encontrar algum texto traçando um paralelo entre os dois. Tem muita coisa boa que pode sair daí.
      (Sobre a sensação necessária: concordo. E acho que é um livro necessário não só aqui.)
      Obrigada pela leitura, Gustavo!

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