Um jogo filosófico sobre percepção (Ou: Quem tem medo de Siri Hustvedt?)

Dirigido por Tim Burton, o longa Big Eyes (2014) conta a história real de Margaret Keane (Amy Adams), uma artista que permitiu que o segundo marido, Walter Keane (Christoph Waltz), recebesse o crédito por seu trabalho como pintora. Margaret, que retratava crianças com enormes olhos, permaneceu desconhecida até o momento em que Walter, apresentado como um sujeito ambicioso e manipulador, resolveu expor seus quadros em uma boate. Ali, sem que Margaret soubesse, ele assumiu a autoria das obras. Quando, pouco depois, ela descobriu a farsa, não pôde ou não quis contar a verdade. Os Keane logo expandiram o negócio, imprimindo pôsteres e cartões que mostravam meninos e meninas com cara de espanto — todos criados por ela e atribuídos a ele. Ficaram ricos. Ao justificar o êxito, Walter ressaltava a invisibilidade da arte produzida por mulheres. Se não fosse dele o rosto por trás dos quadros, dizia, as coisas seriam diferentes.

Não se pode desprezar o carisma e a lábia de vendedor de Walter — além de certo tino empreendedor —, fatores determinantes para sua ascensão meteórica na década de 1950. E, no caso dos Keane, é preciso diferenciar o sucesso comercial (que alcançaram) de uma boa reputação no meio artístico (que nunca conquistaram). Ainda assim, a cena que mostra a inauguração da galeria do casal é incômoda: Margaret carrega uma bandeja com os drinques enquanto Walter, o anfitrião sedutor, é o alvo das atenções e dos tapinhas nas costas.

Corta para outra cena. Walter, convidado a participar de um programa de tevê, pede explicações e conselhos à mulher. O que ele diria quando o interrogassem a respeito das suas (na verdade, as dela) escolhas estéticas? Margaret, cansada da farsa, responde que a arte é uma questão pessoal. É uma boa maneira, ainda que um tanto reducionista, de resumir as coisas. De fato, o debate centrado na forma como criamos e percebemos a arte parece interminável — e, ainda que tenha sido sutilmente evitado ao longo do filme, é importante para que se entenda os eventos explorados em Big Eyes.

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Anos depois, já separada de Walter, uma Margaret fortalecida procurou uma rádio para revelar a verdade a respeito dos quadros. Não foi fácil escapar da armadilha. Margaret, como é dito no filme, estava “presa à mentira que ajudou a construir”. Quem também se viu enredada na própria farsa foi Harriet Burden, protagonista de O mundo em chamas, romance mais recente da norte-americana Siri Hustvedt. Ao contrário de Margaret, no entanto — mera cúmplice das circunstâncias —, Harriet armou a emboscada na qual foi surpreendida.

Burden, uma artista sexagenária, quer provar que foi injustiçada em sua curta carreira. Para isso, convoca três sujeitos do mundo da arte: Rune, Anton Tish e Phineas Q. Eldridge. São suas máscaras vivas. Ela cria uma exposição diferente para cada um deles — em outras palavras, transfere deliberadamente a autoria dos próprios trabalhos para os homens. O objetivo de Harriet é mostrar que suas obras, quando assinadas por ela, eram avaliadas injustamente ou mesmo desconsideradas. Armadas as exposições, os três, ainda que obtenham graus de sucesso distintos, são notados e elogiados. Rune, um artista já famoso, é o mais festejado.

O plano de Harriet era simples: desconcertar críticos, colecionadores e marchands ao revelar a fraude. Todo o burburinho em torno das exposições seria chamado de “as proliferações”, que integrariam, na ideia de Burden, um “diálogo mais amplo a respeito da arte e da percepção”. No entanto, por ingenuidade ou descuido, Harriet não previu que os eventos pudessem sair do controle. Seu erro foi apostar em máscaras de carne e osso.

Ainda que as coisas tenham dado errado, ou justamente por isso, o volume que o leitor tem em mãos se torna uma espécie de compilação das proliferações. Harriet já está morta, e a reunião dos materiais que compõem o livro é feita por um editor, I. V. Hess — ele também, é claro, um personagem criado por Siri Hustvedt. Hess revisa os diários de Harriet Burden, colhe depoimentos e rastreia resenhas das exposições. O resultado, um apanhado extenso e variado, expõe as predisposições e os equívocos da percepção humana ao mesmo tempo em que tenta esclarecer a cadeia de eventos que culminou no fracasso do experimento de Burden.

Todos os testemunhos são parciais, de modo que muitos deles se contradizem. É essa a intenção de Siri Hustvedt. No prefácio, Hess frisa que prefere “deixar que o leitor do material […] julgue por si só”. Como em Os detetives selvagens de Bolaño, quem está de fora deve assumir o papel de investigador. Certas pistas, porém, são dúbias ou enigmáticas. É a essência do livro. A própria Harriet, alta e corpulenta, é conhecida como “Harry”, um nome masculino. Assinalada de modo tão inequívoco, a ambiguidade irá marcar todas as situações que envolvem a protagonista.

Harriet Burden, é claro, não é uma vilã. Tampouco é uma criatura indefesa ou uma justiceira. A engrenagem de O mundo em chamas só entra em funcionamento depois da morte do marido de Harry, Felix Lord, um conhecido marchand e colecionador. A nova condição — ela agora é uma viúva, a viúva de Felix Lord — dá a Harry a chance de resgatar a individualidade a que havia renunciado em nome do casamento e dos filhos. Ela volta a produzir arte, mas, renovada e munida de uma nova confiança, deseja ser reconhecida. A partir daí, surge a ideia de usar os três homens como fantoches para apresentar seu trabalho. “Era tarde demais para ressurgir como eu mesma”, escreve Harry em um de seus cadernos.

Hustvedt (ou Burden, que também o utiliza) roubou o título de Margaret Cavendish, a duquesa de Newcastle. Com seu comportamento ousado, Cavendish desafiou as proibições impostas às mulheres no século 17 — foi filósofa, cientista e escritora. É isso que interessa a Burden: romper com certas práticas ao mesmo tempo em que expõe o quanto elas são nocivas. Harry está amargurada. Está furiosa. Ela quer ver o mundo — e em especial as convenções contrárias aos interesses femininos — em chamas.

 

Siri Hustvedt

Siri Hustvedt, que desde 1982 é casada com o também escritor Paul Auster, declarou certa vez que os entrevistadores que a procuram parecem mais interessados na figura de seu marido do que no que ela tem a dizer sobre o próprio trabalho. Apesar disso, como afirmou a um jornal espanhol, Hustvedt se considera “um exemplo de que as mulheres não passam despercebidas na literatura”. O problema, assegura, é mais complexo. Os heróis intelectuais são homens, não mulheres. E isso precisa mudar.

Por seu posicionamento dentro e fora dos livros, Siri Hustvedt não pode ser vista de outra forma senão como uma escritora feminista. Seus dois últimos trabalhos põem a luta por igualdade de gênero no centro do palco. A autora não evita, no entanto, as contradições e complexidades do tema, postura indispensável nos domínios da literatura.

Com seis de seus livros publicados pela Companhia das Letras (da ficção, apenas The Blindfold, seu romance de estreia, não foi traduzido para o português), Hustvedt ainda é pouco discutida no Brasil. Se em publicações argentinas e chilenas há bons textos sobre a autora, por aqui o silêncio é eloquente. A recepção de O verão sem homens e O mundo em chamas, seus últimos trabalhos, foi acanhada. Os poucos resenhistas que se ocuparam dos títulos não pareciam dispostos a iniciar um debate a respeito dos méritos e falhas da escrita de Hustvedt. A indiferença é ainda mais preocupante quando se considera a recente radicalização da literatura da norte-americana.

Por um lado, a quantidade de lançamentos que abarrotam as livrarias todos os anos exige que as publicações disponham de um filtro adequado. Por outro, um filtro que não retenha Siri Hustvedt — que há tempos conquistou sua posição entre os grandes romancistas — é falho. Não é um parecer subjetivo: a escrita da autora começa a mostrar qualidades que situam seus trabalhos numa esfera particular.

Entre as várias leituras em que a protagonista Harriet Burden estaria imersa, uma delas seria “uma romancista obscura, Siri Hustvedt”. O senso de humor esconde duas mensagens importantes. Por um lado, Hustvedt assinala que, apesar de compartilhar interesses e reivindicações com a personagem, Burden não é seu alter ego. O outro significado é mais óbvio. Os livros de Siri Hustvedt foram traduzidos para vários idiomas, mas as discussões em torno deles nem sempre rompem a superfície — daí a enxergar a si mesma como uma autora “obscura”. Com efeito, é necessário levar em conta que, em seus melhores trabalhos, Hustvedt abraça fortemente uma variante sui generis daquilo que ficou conhecido como romance de ideias. Suas narrativas são brilhantes, mas seu sentido nem sempre é acessível — tendência que vem se acentuando.

Penso que algo na escrita de Siri Hustvedt sempre ameaçou se romper. Não me refiro à reação da autora ao machismo, mas a algo mais ostensivo. Em seus primeiros livros, Hustvedt parece sondar e testar certos limites, os mesmos que ameaçou e conseguiu dissolver. O que antes era sugestão ou possibilidade foi, não sem alguma hesitação, consumado. Até a publicação de O verão sem homens, ao qual se seguiu O mundo em chamas, ainda era possível dizer que Hustvedt escrevia romances enganosamente simples — ainda era possível afirmar que as conexões, as referências e os significados de suas narrativas estavam ocultos sob um verniz de obviedade. Em outras palavras, era possível ignorar todo o aparato de Hustvedt, presente desde o excelente O que eu amava, e encarar a trama mais ou menos descomplicada em primeiro plano. Não mais.

Em seu site pessoal, Hustvedt esclarece que sofre de enxaquecas desde a infância, condição que a levou a se aproximar da psicanálise e da neurociência. Finalmente, abandonados os subterfúgios, seus conhecimentos foram transpostos para a ficção. Em O mundo em chamas, Burden surge como uma personagem “afundada até o queixo na neurociência da percepção”, sendo que “aquelas teses ilegíveis, com os seus resumos e discussões” poderiam justificar “a sua segunda vida como trapaceira”. Não é difícil traçar (mais um) paralelo com Siri Hustvedt. Se, graças aos interesses singulares, a criatura emerge como falsária, a criadora inicia uma fase mais madura em sua trajetória de romancista. Porém, ao contrário de Burden, Hustvedt não é uma embusteira. Seu estágio atual se mostra muito mais genuíno.

Em O verão sem homens, um pequeno romance publicado originalmente em 2011, Hustvedt ensaiou a mudança de rumo. Há referências a correntes filosóficas, a pensadoras do feminismo e a artigos científicos, todas diluídas numa narrativa que de resto é, como as anteriores, mais ou menos tradicional. Prestes a completar sessenta anos, a autora parecia ter soltado algumas das amarras que impediam sua criatividade de alçar novos voos. Já em O mundo em chamas, indicado ao Man Booker Prize, Hustvedt assumiu riscos ainda maiores. As anotações de Harriet Burden trazem inúmeras citações, em especial de autores ligados à neurociência e à psicanálise. Notas de rodapé atribuídas a Hess, o editor, explicam as fontes e as linhas gerais das teorias citadas.

O livro mais popular de Siri Hustvedt é O que eu amava, cuja trama, assim como O mundo em chamas, também está atrelada ao universo da arte. Hustvedt chega a fazer alusão a ele quando diz que o artista William Wechsler, um dos personagens centrais de O que eu amava, é uma das influências de Burden. Publicado originalmente em 2003 (e traduzido por ocasião da vinda da autora para a Flip em 2004), o romance dá pistas daquilo em que a literatura de Siri Hustvedt se transformaria. Questões sobre a percepção, a autenticidade e a perda estão lá, ainda que formuladas em surdina. Agora, depois da guinada, todas aparecem na superfície.

Penso que Siri Hustvedt transporta para o terreno da ficção tudo aquilo que mobiliza sua atenção de modo implacável. Nesse deslocamento, é claro, as coisas se transformam e criam vida. Ao redigir o ótimo Desilusões de um americano, a autora lançou mão de dados e informações que compõem a trajetória de sua família de imigrantes noruegueses. Assim, para ela, a escrita parece surgir como uma expressão de afeto e de liberdade. Seus interesses, que nos romances assumem formas caóticas e mirabolantes, em seus ensaios e artigos se ajustam à configuração esperada. Em certo sentido, Hustvedt agora usa a literatura para explorar e reordenar de maneira criativa o produto de suas pesquisas multidisciplinares, injetando certa vitalidade naquilo que, de outra maneira, estaria subordinado ao rigor acadêmico.

O problema é que Siri Hustvedt não só acumulou uma bagagem digna de nota como fez questão de utilizá-la — uma afronta imperdoável. A diversidade de suas leituras, agora escancarada também na ficção, começa a despertar rancor. Sobre Harry, é dito que “só o conhecimento dela servia como causa de irritação para alguns críticos”. Isso também vale para Siri Hustvedt. Há quem veja certo exibicionismo na profusão de citações de seus dois últimos livros — uma acusação que na maior parte das vezes carece de sentido.

Hustvedt encontrou uma maneira singular de conciliar seus interesses, empregando, em sua literatura, aquilo que desperta seu entusiasmo. É um mérito. Involuntariamente, sempre gostei de escritores que costumam ser apontados como exibicionistas ou (o que pode ser visto como uma variante) ególatras. De Philip Roth a David Foster Wallace, passando por Karl Ove Knausgård, todos foram acusados de transgressões do tipo. Mulheres, é claro, têm o direito de dispor das mesmas ferramentas e, se assim quiserem, de cultuar o próprio eu. A ficção é território livre. Voltamos ao que disse Margaret Keane em Big Eyes: a arte é (ou pode ser, sem que se considere isso um defeito) uma questão pessoal.

Mas Siri Hustvedt faz concessões, é claro. Não é preciso ter familiaridade com os assuntos abordados para compreender a proposta de seus livros. As ideias-chave são apresentadas de forma facilitada — e mesmo mencionadas de passagem —, e não comprometem o avançar da leitura. Kierkegaard, Freud e Merleau-Ponty podem ser, ao gosto de quem lê, vultos, figurantes ou figuras de relevo. Tudo depende do quanto se quer submergir na leitura. De qualquer forma, a Siri Hustvedt romancista não é a Siri Hustvedt acadêmica. A primeira, a que nos interessa, não escreve para fornecer as respostas, mas para lançar as provocações. Encontrar uma saída, se houver, seja qual for, é tarefa do leitor.

É possível questionar qual é a vantagem de usar, na ficção, breves recortes de teorias variadas. Creio que aquilo que Hustvedt acrescenta à narrativa pode apontar os caminhos que ajudam a desvendar seu universo ficcional. Em certo sentido, as referências enriquecem o diálogo que a autora teria aberto de qualquer maneira com o enredo. Além disso, apesar de marcarem os interesses de Harriet Burden, as ideias não constituem a sustentação da trama.

O fio condutor do romance são os experimentos de Burden. Tudo gira em torno deles, e cada um dos capítulos procura esclarecer um novo detalhe. Diante disso, a estratégia de reunir documentos e testemunhos a fim de delinear uma espécie de panorama — um panorama com início, meio e fim — é uma boa saída, ainda que desgastada pelo uso: romancistas dos mais variados estilos, com diferentes graus de sucesso, já apostaram em um formato similar. Hustvedt é bem-sucedida: a polifonia de O mundo em chamas funciona bem. Os relatos raramente são repetitivos, e se sobrepõem com elegância de modo a compor o quadro geral da psique e dos experimentos de Harry.

Em meio a tantas vozes, Hustvedt quer dar ao leitor a tentação de avaliar os personagens pelo viés da psicanálise. Quase todos os seus personagens, e Harry sobretudo, são excessivamente complexos, portadores de lembranças e traumas embalados e prontos para o diagnóstico. Hustvedt, que acumula leituras de Freud e Lacan, tem uma boa bagagem para preparar perturbações, neuroses e paranoias sob medida. Algumas são óbvias; outras, nem tanto.

No prefácio, I. V. Hess observa que Harriet Burden “não pode ser compreendida a menos que a qualidade de diálogo de suas ideias e de sua arte seja levada em consideração”. Não deixa de ser constrangedor que Siri Hustvedt, a quem o mesmo (mais uma vez) se aplica, precise deixar isso claro. No entanto, a necessidade de sublinhar o fato pode vir da exasperação de ser continuamente interpretada de forma rasteira. É o que acontece. De fato, Hustvedt é assustadoramente subaproveitada.

O leitor que têm interesses semelhantes aos de Hustvedt pode extrair o melhor seus livros. Ao contrário de outros autores considerados difíceis — cuja dificuldade maior reside na linguagem, por exemplo —, o que ela entrega deve ser procurado também do lado de fora.

 

Sexismo

“Desconfio que, se eu tivesse vindo em outro pacote, o meu trabalho poderia ter sido abraçado, ou pelo menos abordado, com mais seriedade. Eu não acreditava que tinha havido algum complô contra mim. Muito do preconceito é inconsciente. Aquilo que aparece na superfície é aversão não identificada, que é então justificada de alguma maneira racional”, escreve Burden. Mesmo sublinhando o preconceito automático, Siri Hustvedt não parece acreditar que tudo possa ser atribuído ao sexismo. Pronta a desprezar explicações fáceis, como atestam seus múltiplos interesses, Siri Hustvet sabe que a equação é mais complexa. No prefácio, Hess aponta que “a história não pode simplesmente ser contada como uma parábola feminista, apesar de parecer óbvio que o preconceito sexual teve papel determinante na percepção da obra de Burden”.

No romance, Hustvedt faz questão de entregar contrapontos. “A arte não é uma democracia, mas esta verdade nua e crua não deve ser nem mesmo sussurrada na nossa cidade irritadiça e delicada de mediocridades boazinhas, liberais, descafeinadas e cegas aos fatos. […] Será que houve discriminação e preconceito contra as mulheres? Claro que sim, mas o feminismo não ajudou a causa em nada; as feministas gritaram por números e cotas e transformaram as artistas mulheres em ferramentas políticas”, diz um personagem provocador, que em seguida comete o erro grosseiro de afirmar que “talvez existam mais homens que mulheres na arte porque os homens são artistas melhores”, como se o complemento fosse a derivação lógica das primeiras frases. Seja como for, o julgamento cabe ao leitor (o investigador).

Questionar a extensão e o caráter da percepção, como faz Hustvedt, não é o mesmo que dizer que estamos livres do machismo estrutural. Há bons exemplos em Big Eyes. (a) Nos poucos quadros assinados pela própria Margaret expostos na galeria do casal — muitos deles autorretratos carregados de melancolia —, um sujeito, que claramente está flertando com ela, vê “sensualidade”. (b) Quando, com uma mistura de condescendência e má vontade, Walter consegue que um jornalista se interesse pelo trabalho da mulher, a entrevista não gira em torno das influências artísticas de Margaret, mas de sua vida em família. (c) Na década de 1960, quando Margaret decide divulgar a armação do marido, Walter logo a acusa de ser louca. O adjetivo é muito usado para atingir mulheres. (Se você ler as respostas ao meu texto sobre Graça infinita, verá que um sujeito me acusou de ser “perturbada”. Um homem receberia o mesmo comentário?) Siri Hustvedt questiona o termo em A mulher trêmula, seu único livro de não ficção publicado no Brasil. Também em O verão sem homens a protagonista, Mia, é constantemente assombrada pela loucura.

Numa entrevista recente, Hustvedt salientou que a tramoia de Burden é muito mais do que um truque feminista. A personagem deseja, de fato, questionar a percepção de modo geral. E aqui entra a colocação da autora citada mais acima: os homens ainda são considerados os intelectuais por excelência. Hustvedt, que assusta e intimida, dá um passo essencial para mudar essa realidade. Por isso é necessário discutir seus livros.

Na mesma entrevista, uma de suas respostas é significativa — e entrega seus interesses: “Na cultura ocidental, as mulheres têm sido identificadas com o corpo, as paixões e a natureza, e os homens com o intelecto e a razão, desde os gregos. […] Se o pensamento e a razão são entendidos como atividades masculinas, é fácil entender por que as mulheres têm sido marginalizadas e por que seus feitos são subvalorizados ou ignorados. Não creio que o pensamento e a razão possam ser separados do corpo. […] A mente não existe em uma esfera afastada do corpo e creio que a ressignificação do corpo em espaços como o da fenomenologia e outras ciências cognitivas podem nos ajudar a repensar o dualismo mente/corpo e masculino/feminino”.

 

Eu sou Ulisses

A grande especialidade da protagonista de O mundo em chamas é “criar obras concentradas na ambiguidade”. Harry “não aceitava muito bem as maneiras convencionais de dividir o mundo — preto/branco, homem/mulher, gay/hétero, anormal/normal”, meras “imposições, categorias de definição incapazes de reconhecer a confusão que nós somos, nós, os seres humanos”. Eis o sopro de vida do livro, o que o impede de se tornar um apanhado de saídas fáceis de onde a complexidade foi varrida — o que a literatura nunca é, nem pode ser.

A identidade de gênero é um tema caro a Siri Hustvedt, que já o havia abordado em O que eu amava. Basta lembrar que um dos personagens centrais do romance é um rapaz que veste roupas de mulher e cultiva uma identidade feminina. Contudo, bem ao gosto da autora, não se sabe se seu caso é de transexualidade, de dupla personalidade ou, no fim das contas, de mera performance artística. Burden, embora não vista roupas masculinas em público, também abusa da ambiguidade.

Em dado momento, Burden se identifica como “ambissexual”. É a definição perfeita para a personagem. “Você já foi ambivalente a respeito do seu sexo, Harry? Pode apostar que sim”, escreve ela em um de seus cadernos. E ainda: “Eu não sou aquele exemplo de virtude, Penélope esperando por Ulisses e recusando os pretendentes. Eu sou Ulisses”.

 

Percepção 

Todo livro de Siri Hustvedt apresenta um problema epistemológico central. Em O mundo em chamas, a questão principal — mas não a única — é a percepção da arte. “Quanta gente realmente olhava para a arte? E se olhavam, será que conseguiam enxergar algo nela? Como é que as pessoas de fato a julgavam? […] Sem a aura da grandiosidade, sem o selo da cultura elevada, do modismo ou da celebridade, o que sobrava? O que era o gosto?”, são algumas das perguntas fundamentais. A discussão está armada, mas, de novo, a tarefa de encontrar respostas cabe ao leitor. Hustvedt só entrega o confronto.

Burden sabe que dificilmente compreenderemos em profundidade a maneira como a arte nos influencia. Não é possível, afinal, isolar os muitos elementos que compõem e se relacionam com uma obra. Como escreveu Maurice Merleau-Ponty em sua Fenomenologia da percepção, “um dado perceptivo isolado é inconcebível”.

“Não há visão ordenada sem contexto, parece. A arte não tem permissão para chegar espontaneamente sem autor”, anota Harry em um de seus cadernos. Burden quer entender a “importância da persona do artista em relação à obra exibida”. Ela questiona aquilo que chama de “vida na terceira pessoa”, a atuação do artista que se sabe constantemente observado. O trabalho mais conhecido de Rune, uma de suas máscaras, é precisamente uma filmagem extenuante em que ele aparece desempenhando as ações mais básicas, como escovar os dentes ou olhar o próprio reflexo no espelho. Rune era mais importante do que suas criações.

Mas nem tudo depende do artista. Como fica claro em Big Eyes, a crítica desprezava o trabalho de Margaret Keane mesmo quando era Walter quem assumia sua autoria. Os retratos das crianças sempre foram considerados de mau gosto. “Quem iria querer o crédito [por isso]?”, pergunta um marchand (cuja galeria exibia sobretudo o minimalismo tão em voga na época) quando soube que Margaret reivindicara a autoria das pinturas.

Já as máscaras vivas de Harry não são “personalidades múltiplas”, mas “eus artísticos distintos, eus que saltaram para fora e precisaram de corpos”. Harry não podia ressurgir como ela mesma porque já não era a pessoa que foi antes da morte de Felix. Não havia um corpo habitável para Burden. Nunca houve. No fim das contas, seu erro foi fazer um experimento acreditando conhecer de antemão o resultado. “Enxergamos o que esperamos enxergar”, diz ela, sem entender que a frase se aplicava a ela própria. Foi, é claro, surpreendida.

 

Gratuidade

Pouco ou nada é gratuito nos romances de Siri Hustvedt.

Se quiser, o leitor fica preso ao livro ao mesmo tempo em que vê se abrirem diante de si uma série de caminhos possíveis. As escolhas da autora são um jogo de decifração à parte, especialmente em O mundo em chamas. Maisie Lord, filha de Felix e Harriet, que passa a infância observando os embates dos pais, é abertamente inspirada na protagonista de Henry James em Pelos olhos de Maisie. O nome do segundo filho de Harriet, Ethan, pode remeter ao romance de Edith Wharton, Ethan Frome. O personagem de Wharton (fortemente influenciada por Henry James) também era um tipo calado que permanecia à margem dos acontecimentos.

Até um personagem de menor importância, o Barômetro — um dos sujeitos acolhidos no enorme apartamento de Harry no Brooklyn, que funcionava como um albergue —, pode esconder camadas de sentido. É mais do que provável que o Barômetro tenha alguma relação com “O efeito do real”, famoso ensaio de Roland Barthes. No texto, Barthes parte da descrição de um quarto em um romance de Flaubert: “Rente ao lambril, pintado de branco, alinhavam-se oito cadeiras de mogno. Um velho piano sustentava, logo abaixo de um barômetro, uma pilha piramidal de caixas e cartões”. Nas palavras do crítico James Wood, que resume bem o ensaio: “O piano, diz Barthes, está ali para sugerir uma condição social burguesa, as caixas e cartões talvez para sugerir desordem. Mas por que há um barômetro? O barômetro não denota nada; não é um objeto ‘incongruente nem significativo’; é aparentemente ‘irrelevante’. Sua função é denotar a realidade, ele está ali para criar o efeito, a atmosfera de realidade. Ele simplesmente diz: ‘Sou o real’”. Se de fato incorpora e representa o real, é um acaso que o Barômetro de Siri Hustvedt seja esquizofrênico?

Até o sobrenome de Harriet dá margem a interpretações. Burden, para ficar na mais óbvia, significa “fardo”. Mas é possível ir além. Jane Burden (que depois mudaria o sobrenome para Morris) foi uma modelo de traços andróginos que nasceu no século 19. Nos retratos feitos pelo marido, Dante Gabriel Rossetti, seu rosto parece tão peculiar que pode passar por masculino.

 

Por fim

Harriet Burden quer provocar. Quer chacoalhar as certezas, embaralhar as referências, brincar com pistas verdadeiras e falsas. Siri Hustvedt também.

É imperdoável que seja ignorada.

16 Comments Um jogo filosófico sobre percepção (Ou: Quem tem medo de Siri Hustvedt?)

  1. Simone Mello

    Que texto GENIAL, Camila! Li com imenso interesse e prazer, obrigada!! Seguindo indicação tua eu li O que eu amava da Siri (igualmente GENIAL), mas ainda não me sinto preparada para os demais livros dela.

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  2. Graça

    Camila, texto genial, lúcido, quanta competência!
    Puro encantamento!
    Parabéns!!!!!!!
    Muito obrigada por tornar o meu dia melhor.

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  3. Graça

    Oi, Camila
    Estou aqui novamente para dizer que adorei o comentário da Solange.
    Concordo plenamente.
    Parabéns!
    Beijos

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  4. Vinicius

    Camila ler suas resenhas é um exercício de aprendizado fora do comum. Sua análise além de aprofundar as questões centrais do livro, exerce a crítica de modo a elucidar o pensamento do autor. A fluidez do texto e as conclusões são um convite a obra dos escritores. Siri inclusa na lista das leituras de 2015. Parabéns
    Obs: Ansioso por sua resenha do terceiro do Karl Ove

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  5. Sonia

    Oi, Camila,

    Excelente crítica. Entendo que você não faz resenha, você faz apurada
    crítica literária, o que é raro no Brasil de hoje.
    Por indicação sua, li O que eu amava. Gostei muito.
    Vou partir para mais esse.
    Muito obrigada.
    Um abraço.
    Sonia

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  6. Udinaldo

    Que texto incrível.
    Acabo de ler O mundo em chamas e a leitura de sua crítica me fez perceber muitos pontos que passaram desapercebidos, além de incluir informações extras. Sua análise da questão de gênero no livro é impecável e muito propícia para o momento dualista e generalista que vivemos no movimento feminista. Parabéns!

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