Vida querida – Alice Munro

Alice Munro não pretende voltar a escrever — foi o que a autora declarou em entrevista recente. Caso se mantenha firme na decisão, Vida querida, originalmente publicado em 2012, é seu último livro. Na quarta capa da edição brasileira — lançada no final de 2013 com tradução de Caetano Galindo —, um excerto de uma resenha veiculada no The Telegraph resume o sentimento de seus leitores e de grande parte da crítica: “Os amantes de sua escrita devem torcer para que este não seja, de fato, seu finale. Mas, se for, é um finale espetacular.”

vida queridaA escolha da palavra não é arbitrária. Chamada de “Finale”, a segunda parte de Vida querida traz quatro textos que, segundo Alice Munro, “não são exatamente contos”. De acordo com a autora, o conjunto representa “uma unidade à parte, que é autobiográfica em espírito, apesar de não o ser inteiramente, às vezes, de fato”. Os experimentos seriam “as primeiras e as últimas” e “as mais íntimas” coisas que Munro teria a dizer a respeito da própria vida. Mais um indício de que o livro é uma despedida.

Há boas amostras do imaginário e das escolhas estilísticas de Alice Munro em “Finale”. “Acho que se estivesse escrevendo ficção e não me recordando de uma coisa que aconteceu, eu nunca teria dado aquele vestido a ela”, escreve em uma das narrativas, “Vozes”. Munro se refere a uma mulher vivaz que atrai olhares de desagrado em um baile da vizinhança. A própria mãe de Alice resolve deixar o lugar em companhia da filha quando nota a presença da outra, que seria prostituta. A intenção de lhe dar um vestido mais discreto, apropriado para uma comunidade conservadora, revela a vontade de preservar a mulher ao diminuir sua evidência — e diz muito sobre a enorme sutileza com que a autora constrói seus contos.

Munro nasceu em Wingham, Ontario, em 1931 — e “Finale”, uma volta ao passado que encerraria uma carreira, sublinha com força esses dados biográficos. Sua época e lugar de origem, com recortes de cenas do cotidiano e obsessões e pulsões juvenis, formam as bases da ficção da autora. Assim, enquanto se despede da escrita em alto nível, Munro empresta algumas chaves para que se leia a sua produção de diversas maneiras.

Referências ao período da Segunda Guerra, que em sua ficção funcionam como um pano de fundo ou um gancho específico, podem ser vistas na parte autobiográfica. Na vida real, Munro percebia com sentimentos conflitantes o que acontecia ao seu redor — como se vê em “Vozes”, que, depois de destacar a mulher de vestido chamativo, se detém em dois jovens soldados responsáveis pela primeira concepção de erotismo da jovem Alice.

Se uma das narrativas aborda sua descoberta do erotismo, outra mostra o primeiro confronto da autora com a mortalidade. Em “O olho”, uma assustada Alice é conduzida pela mãe ao velório de uma moça que costumava trabalhar em sua casa. Pequena demais para compreender o que se passa, ela acredita ter recebido uma piscadela cúmplice da morta. “Noite”, o mais inquietante dos quatro, analisa pensamentos obsessivos e macabros que Munro, adolescente, não se sentia capaz de deter.

As memórias não foram colocadas em ordem cronológica, de modo que não há uma Alice pequena que amadurece na medida em que os relatos vão sendo construídos. Tampouco as recordações são estanques: não se detêm em uma cena, apesar de se centrarem em uma. Tudo se mistura, e a autora lembra dos pais e da casa que ocuparam e dos tempos de escola sem muita preocupação em seguir uma linha determinada, procedimento que a autora repete em algumas de suas melhores narrativas de ficção. “Vida querida”, que encerra a coletânea, é talvez o mais dispersivo dos quatro — ainda que gire em torno de uma cena específica em que a vida de Alice, ainda bebê, é ameaçada por uma mulher delirante.

Possivelmente encerrando a produção ficcional de Munro, Vida querida traz dez excelentes contos. Seguem a mesma linha dos anteriores: sua matéria-prima é a vida ordinária da qual Enrique Vila-Matas desdenha com humor em Exploradores do abismo (“Dediquei-me a falar de seres comuns e vulgares”, escreve o catalão ao ironizar os contos cujo tema é o cotidiano).

Os dilemas femininos da primeira metade do século XX continuam a ocupar o imaginário de Munro. Greta, a protagonista de “Que chegue ao Japão”, é uma poeta cuja permanente inquietação rivaliza com as — na época em que o conto é ambientado, rígidas — obrigações de mãe e dona de casa. Em “Recanto”, um dos melhores da coletânea, uma mulher submissa ao marido e uma pré-adolescente de família progressista criam um vínculo inesperado. Como nas melhores narrativas da autora, a história vai além disso.

“Amundsen”, focado em uma mulher que trabalha em uma instituição para pacientes com tuberculose, é possivelmente o melhor da coletânea. Um mistério sem resposta óbvia, outro trunfo da ficção de Munro, é responsável por boa parte da força do conto. “Trem”, um dos mais longos, é outro destaque: nele, as reviravoltas tão comuns às narrativas da autora têm um papel central. “Dolly” e “Cascalho”, que manipulam as emoções do leitor, também chamam a atenção — nesta que é provavelmente a última coletânea da magnífica Alice Munro.

7 Comments Vida querida – Alice Munro

  1. Marco

    Eu tive a impressão de estar lendo o derradeiro livro de Munro quando recebi o livro, ainda em 2012. No título original, “Dear Life”, “dear” também pode ser traduzido como “Prezada”, “Cara”, dando a entender que se tratava de uma “carta à vida”, e quem faria uma carta à vida a não ser alguém que a estivesse passando a limpo? Contudo, como leitor da Alice Munro desde 2008, espero estar errado. Contudo, duas observações: não sei por que cargas d’água a Companhia das Letras resolveu dar esse título de “Finale” aos quatro últimos contos. Tal nomenclatura não existe no livro original. Quem inventou isso foi a edição brasileira, não a autora. Assim como essa informação, também da editora, de que esse livro traria ” ‘as primeiras e as últimas’ e ‘as mais íntimas’ coisas que Munro teria a dizer a respeito da própria vida.”. Não são. Em 2006, Alice Munro escreveu um livro inteiro (“The View from Castle Rock”, que vai sair pela editora Globo no Brasil) em que cada conto reconstrói a história de sua família e de sua cidade natal. A mim, grande fã da Companhia das Letras, ficou aquela sensação de que a pressa em lançar o livro fez com que eles trouxessem informações que não fizeram muita questão de checar… A tradução do Galindo e a edição do livro em si, entretanto, são impecáveis.

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  2. Graça

    Olá, Camila!
    Belíssima resenha.
    Sou fã de Alice Munro e gostei imensamente do comentário do Marco.
    Vou torcer para que o final não aconteça tão cedo.
    Abraços
    Graça

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  3. carla c.

    Também gostei muito da prosa de Alice Munro, de quem, por enquanto, li apenas “O Amor de uma Boa Mulher”. Quero muito ler mais dela e sua resenha só faz aumentar a vontade.

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