Trinta anos sem Thomas Bernhard neste 12 de fevereiro. Extinção é o livro do autor que mais me fascina. A diatribe do narrador contra tudo e todos, contra os parentes e a Áustria e a cozinha austríaca e os diplomas e títulos — ao longo da qual explodem frases hilárias nas quais se condensa o puro ódio delirante, como quando diz que a fotografia “é a maior desgraça do século XX” —, com suas repetições e circularidades, é uma diatribe oscilante, mutante, capaz de registrar o instantâneo e inconcluso em curso vivo, de cristalizar o instante em uma continuidade fluida, e que aproveita e desafia a noção de ritmo, de duração, de sequência temporal e de pensamento. Por isso acho estranho dizer que algo ocorre “no” monólogo de um narrador de Bernhard: sempre prefiro usar “durante o”. Extinção é, de qualquer forma, um dos melhores livros para se reler.
* * *
“Meu tio Georg decifrou-me os mistérios da música e da literatura e familiarizou-me com compositores e poetas como pessoas vivas, e não como bustos de gesso a serem espanados três ou quatro vezes ao ano. A ele devo o fato de haver aberto nossos livros, que pareciam fechados para todo o sempre em nossas bibliotecas, e de começar a lê-los e não ter parado com essa leitura até hoje, de haver aprendido, enfim, a filosofar. A meu tio Georg devo o fato de não me haver tornado, afinal, apenas uma pessoa inserida mecanicamente na engrenagem financeira e econômica de Wolfsegg, mas tenha me tornado uma pessoa que pode perfeitamente ser definida como livre. De não haver feito somente viagens estúpidas, ditas de estudo, como aquelas com que meus pais estavam habituados e que também eu fiz com meus pais nos primeiros anos, para a Itália e para a Alemanha por exemplo, para a Holanda e para a Espanha, mas de haver aprendido, e desfrutado até hoje, a arte de viajar como um dos maiores prazeres que o mundo tem a oferecer. Graças a meu tio Georg não conheci cidades mortas, mas bem vivas, não visitei povos mortos, mas vivos, não li escritores e poetas mortos, mas vivos, não escutei música morta, mas viva, não vi pinturas mortas, mas vivas. Em vez de colar os grandes nomes da história nas paredes internas de meu cérebro, como decalques insípidos de uma história igualmente insípida, ele, e ninguém mais, sempre os apresentou a mim como pessoas vivas sobre um palco vivo. Enquanto meus pais mostravam-me dia após dia um mundo de todo em todo tedioso, que pouco a pouco paralisava minha cabeça, meu tio Georg, pelo contrário, apresentava-me esse mesmo mundo como sempre e inevitavelmente de extremo interesse.”
“Desprezo as pessoas que fotografam constantemente e que andam o tempo todo com sua máquina fotográfica pendurada ao pescoço. Constantemente elas estão em busca de um tema e fotografam absolutamente tudo, até as coisas mais absurdas. Constantemente elas não têm nada na cabeça a não ser retratar a si mesmas, e sempre da maneira mais repulsiva, coisa de que no entanto elas próprias não têm consciência. […] O fotografar é uma mania sórdida que pouco a pouco se apodera de toda a humanidade, porque ela não está somente apaixonada pela deformação e pela perversidade, mas louca por elas, e com o tempo, de tanto fotografar, ela toma efetivamente o mundo deformado e perverso como o único verdadeiro. Aqueles que fotografam cometem um dos crimes mais sórdidos que podem ser cometidos ao transformar a natureza, em suas fotografias, num grotesco perverso. Em suas fotografias, as pessoas são marionetes ridículas, irreconhecíveis de tão distorcidas, mutiladas mesmo, que com ar obtuso, repulsivo, fitam assustadas suas lentes sórdidas. O fotografar é uma paixão abjeta que se apoderou de todos os continentes e todas as camadas sociais, uma doença de que foi acometida toda a humanidade e da qual não pode mais ser curada. O inventor da arte fotográfica é o inventor da mais desumana de todas as artes. A ele devemos a infinita deformação da natureza e do ser humano que nela vive, reduzidos à careta perversa de um e de outro. Ainda não vi em nenhuma fotografia uma pessoa natural, quer dizer, verdadeira e real, como ainda não vi em nenhuma fotografia uma natureza verdadeira e real. A fotografia é a maior desgraça do século XX. Observar fotografias sempre me nauseou mais que qualquer outra coisa.”
“Tal como noventa por cento da humanidade, também ele acreditava que o diploma conferido com mérito pela última escola que frequentara fosse o auge de sua vida. E assim é com a maioria das pessoas, é de deixar qualquer um maluco. Elas saem do colégio e estacam o passo e não fazem mais o menor esforço. E desmoronam, como se pode dizer, sobre si mesmas. E alguém que não se esforça é sem dúvida uma pessoa repulsiva que, quando a observamos, não há como observá-la sem a máxima aversão. Ela nos deprime, com o tempo não nos deixa só infelizes, mas furiosos. Avançamos contra ela, sem o mínimo proveito. A humanidade, parece, só se esforça enquanto tem em vista diplomas estúpidos, dos quais possa gabar-se em público, tão logo tenha em mãos o suficiente de tais diplomas estúpidos, ela solta o corpo. Em grande parte ela vive somente para obter diplomas e títulos, por nenhum outro motivo, e uma vez obtidos, em sua opinião, um número de diplomas e títulos suficiente, ela se deixa cair no leito macio de diplomas e títulos. Ela não tem, parece, nenhum outro objetivo na vida. Não tem, ao que parece, nenhum interesse numa vida própria, independente, numa existência própria, independente, só nesses diplomas e títulos, sob os quais há séculos a humanidade ameaça sufocar. As pessoas não se empenham por independência e autonomia em geral, por seu próprio e natural desenvolvimento, mas apenas por esses diplomas e títulos, e por esses diplomas e títulos estariam dispostas a morrer prontamente, se eles lhes fossem incondicionalmente entregues e conferidos, essa é a desmascaradora e deprimente verdade. Elas estimam tão pouco a vida em si que só têm olhos para os diplomas e títulos, e mais nada. Elas penduram os diplomas e títulos nas paredes de suas casas, nas casas dos açougueiros e filósofos, dos ajudantes de cozinha e dos advogados e juízes estão pendurados os diplomas e títulos, e sua vida inteira eles fitam esses seus diplomas e títulos com olhos ávidos, que ganharam de tanto fitar avidamente tais diplomas e títulos. Quando falam de si mesmos, no fundo não dizem, eu sou esta ou aquela pessoa, mas eu sou este ou aquele título, eu sou este ou aquele diploma. E não privam da companhia desta ou daquela pessoa, mas somente deste ou daquele diploma e deste ou daquele título. Assim, podemos afirmar sem rodeios que, na humanidade, não são as pessoas que se relacionam entre si, mas só os diplomas e títulos, as pessoas, grosseiramente falando, não contam na humanidade, importantes são apenas os títulos e diplomas. Há séculos não são as pessoas que atraem a vista, mas só títulos e diplomas.”
.
Extinção
Thomas Bernhard
Tradução de José Marcos Mariani de Macedo