
Enquanto estava sentada debaixo das letras enormes que formavam a palavra café, conheci um casal que ia viajar para San Diego. Vi isso como um sinal auspicioso. Uma viagem de oito horas, e eu ia poder ir junto por oitenta e cinco dólares. Combinamos que nos encontraríamos de manhã. Sem conversa, era essa a regra. Concordei depressa, sem pensar de fato em nada daquilo.
Naquela noite, apesar do frio, caminhei pelo píer de Santa Cruz, o maior píer de madeira dos Estados Unidos, quase um quilômetro de comprimento. Foi usado para embarcar batatas de San Francisco para os campos de mineração de Sierra Nevada durante a corrida do ouro. Normalmente animado, agora não havia uma alma ali, nenhum avião sobrevoando, nenhuma embarcação à vista, só os gemidos e chiados dos leões-marinhos adormecidos.
Liguei para o Lenny, dizendo que não ia voltar por um tempo. Falamos do Sandy com tristeza. A gente se conhecia fazia muito tempo. Fomos apresentados em 1971, depois da minha primeira performance poética, Lenny me acompanhando na guitarra elétrica. Sandy Pearlman estava sentado de pernas cruzadas no chão da igreja St. Mark, com roupas de couro no estilo Jim Morrison. Eu tinha lido seus Excertos da história de Los Angeles, uma das melhores coisas já escritas a respeito do rock. Depois da performance, ele me disse que eu deveria montar uma banda de rock, mas eu só ri e disse a ele que já tinha um bom emprego numa livraria. Aí ele enveredou por uma referência a Cérbero, o cão de Hades, e sugeriu que eu deveria me aprofundar naquela história.
— Não apenas a história de um cachorro, mas a história de uma ideia, ele disse, mostrando os dentes muito brancos.
Ele soou arrogante, ainda que de um jeito atraente, mas a sugestão de que eu deveria montar uma banda de rock, embora improvável, pareceu interessante. Naquela época eu estava com o Sam Shepard, e contei a ele o que Sandy tinha dito. Sam me olhou nos olhos atentamente e disse que eu podia fazer qualquer coisa. Nós éramos todos jovens, e essa era a ideia geral. Que podíamos fazer qualquer coisa.
Sandy agora inconsciente na UTI em Marin County. Sandy atravessando os últimos estágios da aflição. Senti uma atração cósmica em múltiplas direções e me perguntei se algum campo de força idiossincrático ainda estava protegendo outro campo, um com um pequeno pomar no cerne, pesado com uma fruta contendo um núcleo insondável.
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De manhã encontrei o casal na estrada. Nada além de hostis, os dois. Tive que despejar o café no meio-fio para que não derramasse e pagar adiantado antes de me deixarem entrar no carro, que estava todo amassado. O chão estava forrado de latas de repelente de insetos e de Tupperwares com mofo, e parecia que os assentos de couro tinham sido rasgados com facas serrilhadas. Várias cenas de crime me passaram pela cabeça, mas o gosto musical deles era ótimo, músicas que eu não ouvia fazia décadas. Depois da sexta faixa, “Butterfly” de Charlie Gracie, não me segurei.
— Que playlist ótima, deixei escapar.
Para minha surpresa, eles pararam de forma brusca no acostamento. O cara saiu e abriu minha porta, acenando com a cabeça.
— A gente disse sem conversa. É a regra principal.
— Mais uma chance, por favor, eu disse.
Contrariado, o cara deu a partida no carro e lá fomos nós. Queria perguntar se era permitido cantar sozinha, ou ofegar quando começasse uma música boa de verdade, embora até aquele momento todas fossem ótimas, da superdançante à mística e obscura. “Oh Donna”. “Summertime”. “Greetings (This Is Uncle Sam)”. “My Hero”. “Endless Sleep”. Me perguntei se eles eram de Philly, a cidade das velharias, era esse o tipo de música. Sentei num silêncio dócil, cantando mentalmente, levada de volta às reuniões dançantes e a um garoto chamado Butchy Magic, um italiano loiro de South Philadelphia que raramente falava mas tinha um canivete, e que atravessou o território do dever de casa para entrar nos sonhos e ficar morando numa das câmaras silenciosas de um coração jovem e não correspondido.
Quando a gente parou para abastecer, peguei minha bolsa e fui ao banheiro, lavei o rosto, escovei os dentes, peguei um café pra viagem e voltei em perfeito silêncio bem a tempo de ver os dois acelerando rumo ao horizonte das músicas R&B esquecidas. Mas que diabos? Tá bom, então. “My Hero”, eu berrei. Essa foi ótima! Quem é que toca “Endless Sleep” ou “Greetings This Is Uncle Sam”? Fiquei lá gritando um inventário de todas as músicas ótimas que eu tinha saboreado em silêncio.
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O Ano do Macaco
Editora Companhia das Letras
Tradução minha