Zadie Smith descreve o choque que sentiu (e algumas conclusões a que chegou) quando os britânicos votaram a favor do Brexit.
A primeira reação de muitos de esquerda é que se tratava apenas de imigração. Quando chegaram os números e a análise dos votos, separando-os por idade e classe social, ficou mais clara a revolução populista em curso, do tipo que deixa perplexos os liberais de classe média com sua ingenuidade sentimental e política a respeito da classe trabalhadora. Ao longo do dia, telefonei para casa, mandei e-mails e tentei processar, junto com muita gente de Londres — ou pelo menos da Londres que eu conheço —, a sensação de choque. “O que foi que eles fizeram?”, nós nos perguntávamos, muitas vezes nos referindo aos líderes, que achávamos saber o que estavam fazendo, e às vezes ao povo, que, insinuávamos, não sabia.
Agora estou tentada a pensar que era o contrário. Fazer algo, qualquer coisa, era o objetivo em algum sentido rudimentar: a característica mais notável do neoliberalismo é que ele dá a impressão de que nada se pode fazer para alterá-lo, e esse voto ofereceu o raro triunfo de causar uma ruptura caótica num sistema que geralmente segue nos trilhos. Mas até mesmo essa interpretação de esquerda otimista — que foi uma reação violenta, mais ou menos refletida, à austeridade e ao colapso econômico neoliberal que veio a seguir — não pode negar o racismo casual que também parece ter sido liberado, tanto pela campanha como pelo povo.
A esses vários relatos, acrescentarei dois que minha mãe de origem jamaicana me contou. Uma semana antes da votação, um skinhead em Willesden gritou “Über Alles Deutschland!” na cara dela, como se fosse uma lembrança do fim dos anos 1970. Um dia após a votação, uma mulher comprando roupa de cama e banho em Kilburn High Road estava parada perto de minha mãe e de meia dúzia de pessoas vindas de outros países e anunciou, sem um alvo definido: “Era isso, agora vocês todos vão ter que voltar para casa!”.
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SOBRE ESTAR CERTO
Na noite anterior à minha viagem para a Irlanda do Norte, jantei com velhos amigos, intelectuais do norte de Londres. Nós estávamos pensando no Brexit. Provavelmente toda mesa de jantar ao norte de Londres fazia o mesmo. Mas acabou que nenhum de nós pensou a fundo a respeito, pois ninguém acreditou que isso podia se tornar realidade de fato. Era algo tão equivocado, e nós tínhamos razão — então, como isso poderia ocorrer?
Depois de resolver essa questão, passamos a reclamar da estranha tendência entre a nova geração de esquerdistas em censurar ou silenciar o discurso ou as opiniões que eles consideram erradas: boicote a pessoas de quem discordam, espaços seguros e todo o resto. A gente também tinha razão nisso. Mas então, num canto, sentada num sofá, a pessoa mais esperta entre todos nós, que naquele momento alimentava um recém-nascido, esperou que parássemos de tagarelar e disse: “Bom, aprenderam com a gente. Nós sempre quisemos estar do lado certo. Estar do lado certo da questão. Mais do que fazer algo. Estar certo sempre foi a coisa mais importante de todas”.
Nos dias seguintes ao resultado, pensei muito nessa frase. Continuava lendo matérias escritas por londrinos orgulhosos de sua cidade multicultural e aberta,tão diferente daqueles lugares xenofóbicos e fechados ao norte. Pareciam estar certos, e eu queria que fosse verdade, mas o que meus próprios olhos viram oferecia uma contranarrativa. Pois as pessoas que realmente vivem uma vida multicultural nessa cidade são aquelas cujas crianças são educadas em ambientes mistos, ou que vivem em ambientes realmente mistos, em conjuntos habitacionais populares ou em um dos poucos bairros historicamente mistos, e não há mais tantos assim quanto gostaríamos de acreditar.
Para muitas pessoas em Londres, o aspecto multicultural e de diferentes classes sociais é representado pelos serviçais — babás, faxineiras —, pelas pessoas que servem o café ou dirigem táxis, ou a meia dúzia de príncipes nigerianos que você vê nas escolas particulares. A dolorosa verdade é que erguem cercas por toda Londres. Em distritos escolares, em bairros, em vidas. Uma das consequências úteis do Brexit é finalmente — e abertamente — revelar uma fratura profunda na sociedade britânica que foi gestada por trinta anos. As diferenças entre o norte e o sul, entre classes sociais, entre londrinos e todo o resto, entre londrinos ricos e pobres, e entre brancos, marrons e negros são reais e precisam ser confrontadas por todos nós, não apenas por quem votou pela saída.
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Desigualdade extrema racha comunidades, e depois de um tempo as fraturas são tão grandes que o edifício inteiro desaba.
Anuário Todavia
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Tradução (do artigo de Zadie Smith) de Antônio Xerxenesky