Com certeza ele tinha razão, com certeza não só os velhos, mas todos os vivos têm o direito de repelir as partes da realidade que não são fidedignas e que nos amargam ou nos consolam, ou nos privam de toda esperança, ou simplesmente nos contrariam. Sempre podemos dizer “não me consta” sobre aquilo que não nos consta, e o certo é que muito pouco nos consta, quero dizer, que quase tudo o que sabemos é porque outras pessoas nos contaram, ou os livros, os jornais, as enciclopédias ou a história com suas crônicas, arquivos e anais, a que damos crédito por estarem em bibliotecas e serem antigos, como se não se houvessem mentido e tergiversado naquela época e não houvessem prevalecido as lendas. Não assistimos a quase nada, não presenciamos quase nada, não somos capazes de afirmar quase nada, apesar de o fazermos constantemente. Assim, não é muito difícil negar um fato ou a existência de algo quando preferimos negá‑los, a nebulosidade do mundo e a memória ruim (efêmera, dubitativa, mutável) costumam nos entregá‑lo de bandeja. Se alguém admirado ou querido leva a cabo um malfeito, no mais das vezes podemos dizer: “Não, não era ele, ou não era ela, isso é inexato. Achei que era ele, mas devo ter me equivocado. Não enxergava direito, estava escuro e meu estado de espírito alterado, minha perspectiva não era a melhor e eu não estava de óculos. Eu o confundi com outra pessoa que se parecia com ele, deve ter sido isso”. Como não pensar então que um filho desaparecido, o caçula, continuará vivo em algum lugar. Príamo viu, com seus próprios olhos, seu primogênito, Heitor, morrer, morrer a ferro, e por isso foi suplicar a Aquiles que lhe entregasse o corpo arrastado e estropiado dele, para lhe dar sepultura; se aceitou se humilhar foi por ter certeza, porque lhe constava. Mas se não o houvesse visto, se tão só tivessem trazido notícia de que Heitor havia caído num combate singular num campo distante, poderia ter esperado seu regresso, ter confiado no erro das testemunhas, em sua visão ruim ou em sua admissão precipitada, e nada lhe teria impedido de aguardar sua vindoura morte num estado de incerteza. Não é à toa que existem estes verbos: confirmar, comprovar, constatar; verificar, reafirmar, reassegurar; certificar‑se. Não são supérfluos nem servem de enfeite, correspondem às necessidades.
Berta Isla
Companhia das Letras
Tradução de Eduardo Brandão